sábado, 18 de julho de 2020

SENTI-ME DELICIOSAMENTE VELHO!



(Quem sai aos seus não degenera, costuma dizer-se, e os genes maternos tendem a colocar-me numa situação paradoxal perante a canícula, adoro mas fico de rastos. É neste contexto que deve compreender-se a minha reflexão sobre a crónica de Clara Ferreira Alves na revista do Expresso de hoje.

Em busca de uma réstia de frescura pela esplanada da praça central de Caminha, a praça de todos os encontros, cautelosos mas retribuidores, incapaz de me submeter ao uso todo ele cautelas da praia, apesar do apelo dos netos, dei comigo envolvido na crónica de CFA e na volúpia do encanto da recordação dos tempos de Stefan Zweig em Viena (que não conheço) imediatamente antes da sua fuga para vários sítios do mundo, até ao suicídio no Brasil.

Como já repararam tenho um sentimento muito ambivalente e contraditório em relação à personalidade, escritora e jornalista, irritam-me profundamente alguns posicionamentos e identifico-me irresistivelmente com outros, como é o caso desta crónica.

Como também já perceberam tenho um estranho fascínio pelo declínio das épocas e da história, ou seja pelas marcas da passagem do tempo pelos lugares, pelas casas, pelas pessoas, pelas minhas tão apreciadas atmosferas urbanas, sem as quais as Cidades não são rigorosamente nada para mim. Claro que esse fascínio se estende aos escritores e artistas em geral que têm esse raro dom de nos descrever esse declínio. Ora se há época fascinante da história são os adventos da ascensão do bem-estar material iniciado os fins do século XIX que a 1ª Guerra Mundial haveria de interromper, iniciando depois um período negro dessa mesma história com a Grande Depressão de 1930 e a trágica recomposição do mundo e particularmente da Europa com a 2ª Guerra Mundial.

CFA projeta-se em Stefan Zweig dos tempos de Viena de 1934 e ao seu “O Mundo de Ontem” escrito provavelmente nos cafés de Viena “tomando um chocolate quente e uma fatia morna de Apfelstrüdel”, trabalhando uma expressão do próprio Zweig segundo a qual ele designava aquele período a que me referia do antes da 1ª Guerra Mundial de “Idade de Ouro da Segurança”.

Por ironia da história e dado o seu suicídio no Brasil, Zweig haveria de falhar a vivência de uma outra idade de ouro, mais fugaz do que parece. Em torno da recuperação económica da Europa após a 2ª Guerra Mundial iniciou-se  o período de crescimento dito “social-democrata”, fortemente redistributivo, criando uma norma de consumo operário e de classe média, que na segunda metade dos anos 60 haveria de se esboroar, sem que até aos nossos dias o capitalismo encontrasse de novo um rumo, capaz de proporcionar a tal “segurança dourada” de Zweig.

A leitura da crónica de CFA na embalagem da busca de uma réstia de frescura, saboreando um café e uma nata, projetou-me obviamente para uma transposição óbvia e inevitável para os tempos de insegurança de hoje e sobretudo para a perceção que estamos naqueles momentos em que temos a certeza de estarmos a viver mudanças profundas que só daqui a uns tempos e consequentemente sem que provavelmente as possamos vivenciar. E o envolvimento com a perceção do declínio que a pena de CFA sintetiza é inevitável: “O mundo dos cafés de Viena era um mundo de elegância e ritual, como o de esmiuçar o jornal todos os dias para saber o que se passava no mundo. Um mundo cosmopolita onde se podia entardecer à mesa (que maravilha de imagem) sem ter os pés varridos de meia em meia hora por um empregado que esfrega a mesa e repete, o que vai tomar a seguir? É preciso consumir. Somos consumidores e não somos pensadores”.

Faço parte assumidamente do declínio e insegurança que atravessamos, mas naquele recanto de moderada frescura, senti-me deliciosamente velho por partilhá-lo ainda com a capacidade de o inteligir, de ir captando as fontes e rumos da mudança, pugnando para que “os cafés não passem todos a Património Mundial para aliviar a consciência dos guias turísticos” como inapelavelmente CFA o anuncia. Reparo que na praça e nas suas esplanadas várias famílias estrangeiras vão recompondo a atmosfera, não sei se residentes, se imigrantes em visitas temporárias, se alguns obstinados em contrariar a guerrilha patética da procura de turistas. A zona parece estar a conviver bem com a abertura das fronteiras Alto-minhotas com a Galiza e espero que assim continue. Alguns sinais de normalização de condições de proteção sanitária vão se instalando. Um pequeno pormenor, na compra de uns perceves numa lojinha preciosa junto ao mercado municipal, o troco só me foi devolvido depois de devidamente desinfetadas as moedas que o compunham.

Nota final:

Também no Expresso vi finalmente referência científica relativamente a algo que tinha intuído – há cientistas a inclinar-se para a possibilidade do contacto com outros vírus do tipo Corona ter contribuído para a aparente imunidade adquirida por indivíduos que não tiveram qualquer contacto com o COVID-19. Tinha-o intuído quando, refletindo sobre as variáveis que poderiam explicar o grau de exposição dos territórios ao COVID-19, me lembrei que a percentagem de pessoas regularmente vacinadas contra a gripe e contra as pneumonias poderia ser uma variável pertinente a explorar. Aguardo desenvolvimentos.

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