terça-feira, 7 de julho de 2020

UM PAÍS DE IDEIAS FEITAS



(A questão da TAP veio reavivar um dos fados nacionais, há vários e para todos os gostos, mas o que é mais convocado pelos argumentos que andam no ar em torno da TAP é o de Portugal ser um país de ideias feitas. Não que associemos à longa vida como país independente um conjunto de valores e ideias inabaláveis, mas que somos bastante prolixos em tomarmos algumas ideias e as disseminarmos como adquiridos sem mácula.

Ou muito me engano ou a TAP vai-nos fazer mergulhar de novo no universo negro dos nossos fados (não, não é a Amália que regressa), tão variados e enraizados que eles são. Um desses fados é a espantosa frequência com que estamos tarde e a más horas nos sítios errados à hora errada. Esperar estes anos todos para redefinir o papel da TAP equivale a praticar o humor negro mais abominável, pois o transporte aéreo está de rastos e como imaginam tudo é pior do que o imaginável. Mas não é desse fado que gostaria de falar. Apetece-me antes desancar na nossa proverbial prática de disseminar ideias feitas, como se fossem adquiridos plenos, suportados por evidência bastante. Senão vejamos.

Ontem, quando ouvia o Fernando Medina na TVI 24, mais interessado em recolher informação sobre o que de diferente estará agora a passar-se na região de Lisboa em matéria de intervenção sanitária para colocar a região num nível e maior estabilidade, foi a TAP que atraiu a minha atenção. Fernando Medina é muito seguro nas suas intervenções públicas, percebi-o desde os tempos em que foi meu aluno na FEP e dirigia a Federação Académica. Por isso, as suas intervenções públicas não são do tipo fogachos ou crises de humor. Ora, no seu comentário sobre a TAP, Fernando Medina referindo-se ao interesse estratégico (passado) da TAP, usou duas referências que constituem o exemplo perfeito das tais ideias feitas que povoam o nosso imaginário político. A TAP foi apresentada como “motor da economia portuguesa” e “fator de internacionalização da mesma”. Claro que numa televisão de sentido crítico, o entrevistador ou moderador de serviço teria perguntado a que evidências corresponderiam tais ideias e não teria deixado a conversa avançar sem uma completa discussão do tema. Elemento motor da economia portuguesa? Fator de internacionalização ao nível de outras (esses com evidências disponíveis) condições de internacionalização? Há aqui uma perigosa identificação da TAP com o papel associado a infraestruturas de internacionalização e competitividade como os aeroportos. É claro que a palavra HUB (de Lisboa) anda sempre na boca destas pessoas, quando a correção justificaria que fosse mais um “Hubinho” do que um Hub, bastando comparar com a centralidade de Madrid.

A inteligência lisboeta tem sido pródiga no domínio e manipulação destas ideias feitas, a última das quais que acabou recentemente de ruir era a de que a aglomeração metropolitana de Lisboa representava o centro único da inovação em Portugal. Ora, se é verdade que esta última deu origem a alguns argumentos de concentração de investimentos cuja racionalidade económica era duvidosa (quando se invoca um interesse estratégico as condições de procura parecem ser ignoradas, ao passo que para outros territórios se tornam omnipresentes), os danos dessa má alocação de recursos serão amendoins comparados com o derreter de dinheiro público que a TAP nos vai custar.

E já agora que estamos em matéria de TAP, algumas vozes discordantes da doutrina governamental têm surgido no interior do PS. É o caso do deputado Ascenso Simões, capaz do pior (por exemplo a sua movimentação em torno do regresso da Casa do Douro) e pelos vistos do melhor agora com esta posição pública assinada no Jornal Público. Não resisto a um pequeno excerto: “O processo Ibéria pode responder aos grandes argumentos que se apresentam hoje para intervenção estatal. A relação com a América Latina era, no universo espanhol, muito mais relevante que a nossa relação com os países que falam português, a importância insular do transporte aéreo espanhol era incomensuravelmente maior do que a que se afirma nas nossas relações com as regiões autónomas, e o transporte doméstico entre regiões sempre observou uma dimensão que não tem qualquer comparação com a ligação Porto-Lisboa”.

Acho que quem tem carradas de razão é a Susana Peralta que não se cansa de clamar contra a fraca cultura de exigência que existe em Portugal sobre a accountability do uso do dinheiro público. Assino por baixo.

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