quinta-feira, 30 de julho de 2020

VACINO-NACIONALISMO


(A expressão é de António Guterres na qualidade de Secretário Geral das Nações Unidas e assenta como uma luva na pérfida situação mundial que vivemos. A procura de bens públicos à escala mundial corresponde ao que racionalmente se entenderia ser a abordagem certa para os desafios de hoje de que a pandemia é a melhor ilustração. Mas há muito que a racionalidade se escapuliu para parte incerta.

António Guterres talvez não tenha antecipado os trabalhos que iria enfrentar na sua experiência de Secretário Geral das Nações Unidas. Talvez a sua intuição e a sua cultura histórica e política lhe tenham soprado alguma informação sobre os ventos e mares agitados que se adivinhavam. Mas também estou seguro que o seu espírito abnegado de missão, moldado na sua formação católica, lhe terá também segredado que se impunha o sacrifício.

A avaliação do seu trabalho à frente das Nações Unidas está ainda por fazer na extensão total das suas dimensões, do mexer na inércia da casa até aos assuntos mais delicados da sempre instável situação internacional, conflitos potencialmente explosivos à trágica dimensão que o assunto refugiados assumiu no mundo de hoje, com a maior parte dos países a assobiar para o lado.

A sua expressão de hoje, o vacino-nacionalismo é exemplar como expressão comunicacional da tragédia de adulteração dos chamados comuns. Uma pandemia é por definição um problema e uma tragédia global, com sinuosidades na sua expansão pelo mundo em função do grau de abertura dos países e sobretudo da chamada globalização das pessoas. Como problema global e embora se admitam as particularidades da sua manifestação pelo mundo é daquelas situações que convida à racionalidade da procura de uma solução global. E embora há dias o sempre lúcido Professor Henrique Barros, Diretor do Instituto de Saúde Pública da Universidade do Porto, nos tenha recordado que não será por acaso que há cerca de 60 anos se procura em vão uma vacina para os corona vírus, só a descoberta e produção em escala mundial de uma vacina para o Covid-19 nos poderá tranquilizar.

O vacino-nacionalismo tem várias expressões. A tosca, despudorada e “cow-boyesca” tentativa primeira de Trump de assegurar uma oferta exclusiva de uma possível vacina não nos pode fazer esquecer que se assiste neste momento a uma desesperada tentativa dos países de assegurar, individual e o mais apressadamente possível maneira de sossegar por antecipação as suas populações. Não será também por acaso que os intentos mais conhecidos respeitam a populistas que tiveram erros crassos de cálculo e de posicionamento e que pretendem, por essa via, salvar o seu coiro político (Trump, Boros Johnson e Bolsonaro). Mas estou convencido que outros movimentos, bem mais discretos do que estes personagens, estarão neste momento a processar-se.

Dir-me-ão alguns que este vacino-nacionalismo é claramente potenciado pelas dimensões gigantescas que a investigação científica privada assumiu, passível de todas as derivas de mercado (quem der mais ...). Não estou convencido que assim seja e até provavelmente, se aprofundarmos o conhecimento das condições concretas dos projetos de investigação e de descoberta de uma vacina para o COVID-19, iríamos possivelmente encontrar parcerias entre empresas privadas e agências públicas. O problema é, em meu entender, outro. A disponibilização de bens públicos à escala mundial depende antes das condições de governação a essa escala e essas andam pelas ruas da amargura por muito que custe ao próprio António Guterres.

O mundo foi capaz em torno dos vencedores da 2ª Guerra Mundial (pese embora os trágicos sacrifícios associados) de construir a arquitetura dessa governação, com o desenvolvimento económico a dominar os esforços. Essa arquitetura ruiu e está sem referenciais para uma reedição. Os vencedores e vencidos são de outra natureza e o populismo nacionalista feroz mina as bases de qualquer veleidade nesse sentido. Oxalá a União Europeia não se deixe levar pela onda e resista ela própria encontrando formas de conceber uma espécie de bem público à escala europeia.

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