quarta-feira, 8 de julho de 2020

RECURSOS PRÓPRIOS

(Kirkegaard, https://www.piie.com)

No meio da barafunda gerada em torno dos gigantescos números envolvidos na inesperada proposta de bazuca comunitária que emergiu da Comissão Europeia e aguarda o visto bom do Conselho, quase se esquecem outras dimensões cruciais associadas ao assunto. Em concreto, e como muito pertinentemente referencia Jacob Funk Kirkegaard (PIIE) numa nota a propósito (“How Europe is taking another page from US financial history”), a hipótese de uma nova dívida conjunta (500 mil milhões de euros?) para ajudar à recuperação económica pós-pandemia abre uma “profunda questão orçamental” – a saber: “serão acordadas novas fontes de receita direta da UE para pagar as dívidas ou será solicitado aos Estados membros que contribuam com mais fundos para tal?”.

O autor sugere que a matéria possa justificar uma revisitação, que qualifica de irónica, da história americana de finais do século XIX, quando “o governo federal ainda não havia adquirido o direito de cobrar impostos diretos sobre o rendimento das pessoas”. Recordando que “a fonte mais importante das receitas governamentais nas economias democráticas avançadas vem sob a forma de impostos cobrados sobre o rendimento e o consumo da população residente” e que “existe uma relação relativamente objetiva entre o nível de tributação que as pessoas voluntariamente permitem que os seus governos eleitos delas extraiam e a força da sua autoidentificação com o nível de tributação governamental”, avança ainda Kirkegaard ser sabido que “a União Europeia não tem a capacidade de tributar diretamente os europeus” e “obtém mais de três quartos de sua receita orçamental diretamente dos Estados membros”. E continua sublinhando que “a criação de fontes duradouras e consideráveis de novas ‘receitas diretas da UE’ (chamadas ‘recursos próprios tradicionais’, ou TOR na linguagem orçamental da UE) sempre foi, portanto, um objetivo político importante para os policymakers que buscavam fortalecer a capacidade governativa central da UE”, matéria hoje praticamente limitada à dimensão da política comercial externa (direitos aduaneiros pagos diretamente à UE). Ora, é aqui que entronca a dita proposta de dívida conjunta, designadamente enquanto “nova oportunidade de propor ostensivamente fontes de recursos próprios tradicionais” (com a acrescida “vantagem política” de assim se poderem evitar contribuições financeiras adicionais por parte dos Estados membros aquando da amortização da dívida a ser iniciada em 2028, já que, efetivamente, a Comissão Europeia estará a provocar a criação de uma default position na referida data e, neste sentido, a colocar em jogo “a força e a própria natureza da governação da UE a longo prazo”: “a menos que os Estados membros tenham concordado com novas fontes de receita direta da UE até então, eles enfrentarão contribuições financeiras nacionais mais altas para o orçamento da UE mais pagamentos de dívida ou terão de suportar cortes politicamente dolorosos em outras partes do orçamento da UE para pagar a dívida”.

(Andrzej Krauze, https://www.theguardian.com)

Evoluindo para uma comparação com o passado americano, o autor vem acabar por concluir que só forçando esta via a UE poderá vir a posicionar-se no sentido de desempenhar uma “função redistributiva adicional”, a exemplo do ocorrido com o momento em que o governo federal dos EUA logrou aumentar as suas fontes de receitas tributárias diretas (16ª Emenda, 1913). E, avaliando a situação atualmente em presença, Kirkegaard explicita, então, a situação em presença deste modo: “a Comissão Europeia propôs um novo conjunto de recursos próprios semelhantes às fontes de receita que o governo federal dos EUA possuía antes de 1913” – veja-se, com efeito: arrecadação de “mais 10 mil milhões de euros decorrentes da expansão do sistema de comércio de emissões de carbono (ou seja, um “imposto sobre o pecado” do clima no século XXI), 5 a 14 mil milhões de euros de um novo mecanismo de ajustamento de fronteira da UE (isto é, uma tarifa comercial do século XXI), 10 mil milhões de euros de um novo imposto corporativo a nível da UE para empresas multinacionais que operam no mercado interno da UE e 1,3 mil milhões de euros de novas receitas provenientes de um imposto digital para grandes empresas que operam na Europa”, tudo isto a combinar com os 20 mil milhões já cobrados com as tarifas tradicionais e a determinar um aumento para um valor acima dos 50 mil milhões (0,4% da rendimento nacional bruto da UE27) dos European-wide resources (ver, no gráfico de abertura deste post, a comparação com os EUA de antes de 1913). Em suma, muita e boa investigação histórico-económica a potenciar e, sobretudo, a exigência de se prosseguir com firmeza e pinças na exploração desconfinada de um caminho inovadoramente transformador (alguns diriam federador) que será necessariamente longo e árduo mas também o único capaz de garantir um futuro sustentável de “mais e melhor Europa”.

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