(Enquanto que o meu amigo Carlos Costa de partida do
Banco de Portugal se pode orgulhar de ter sido o primeiro a condenar Ricardo
Salgado, tenho vindo a reunir peças de informação sobre a acusação judicial à
grande tramoia do BES para a interpretar à luz do que em meu entender foram as
derivas que conduziram aquele período negro da economia portuguesa. E concluo que as derivas criminosas que subjazem ao caso BES estão indissociavelmente
ligadas à deriva do próprio modelo económico que haveria de se esgotar na
década de 2000.
Por mais que suspeitássemos dos contornos que conduziram ao descalabro do
BES e Passos Coelho pode paradoxalmente ficar na história portuguesa por ter
sido responsável por um Não que evitou salvações em último esforço, a densidade
e diversidade dos elementos de acusação que a justiça portuguesa antes de ir
para férias e no limite dos limites publicou sobre os desmandos do BES
impressiona qualquer um. Mesmo os mais céticos quanto à eficácia da justiça
portuguesa não podem ficar indiferentes face à complexidade da tramoia.
Ao contrário do processo de Sócrates, do qual teremos ainda de esperar
algum tempo pela acusação, em que existe um facto central que parece estar na
base das perspetivas de acusação do envolvimento do ex-primeiro Ministro (a
circulação de dinheiro por vários canais entre os amigos Sócrates e Carlos
Santos Silva), no caso BES, à medida que vamos tomando contacto com as
diferentes peças da acusação, compreende-se que estamos em presença de uma
trama de grandes proporções e estruturada coerência.
Não faço ideia se todos os crimes do longo rol que a acusação desfia serão
objeto em tribunal de prova consistente e irrefutável. Mas o que parece óbvio
da conjugação dos elementos disponíveis é que o banco BES foi utilizado como instrumento
de ocultamento da realidade da falência do grupo GES. Essa realidade terá sido
ocultada através de processos engenhosos de engenharia financeira, aliás alguns
deles já deslindados em investigações jornalísticas seja do Expresso, seja da
SIC. Em estreita combinação com essa engenhosidade terão coexistido métodos mais
simples e clássicos de compras de silêncio que terão engrossado as contas de
alguns daqueles personagens que engrossam, sem percebermos bem porquê, aquelas
longas mesas de conselhos de administração que se apresentam perante as câmaras
para apresentar contas ou comunicar algo de muito importante. Claro que não há
nenhum processo desta natureza que não exija uma inteligência orgânica e essa
parece ser indiscutivelmente Ricardo Salgado que se terá revelado mestre na
arte de seduzir toda a gama de personalidades tontas pela fama e pelo bem bom,
alguns de família (manter a aparência a todo o preço) e outros candidatos a um
elevador social mais ou menos supersónico.
Como economista e fortemente crítico do modelo económico que conduziu o
crescimento português ao esgotamento que haveria penosamente de se confrontar
com as condicionalidades da crise das dívidas soberanas, o desmoronar do GES
que o saque do BES procurou ocultar até à última, iludindo tudo e todos,
reflete bem as falências desse modelo. Várias componentes podem ser destacadas:
(i) a ilusão de uma internacionalização desproporcionada na sua ambição e
contornos à dimensão e mediania do país (ao que os ainda ingénuos contraporão
que um país pequeno não pode deixar de ter ambição); (ii) a também ilusão de
que é possível num país como Portugal a multiplicação de empresas globais
alicerçadas na grandiosidade da capital e da sua corte (a aposta na desmembrada
PT); (iii) a utilização de uma marca, BES, construída noutros tempos para
alimentar essas ilusões; (iv) a construção de uma corte de cumplicidades e
altas remunerações, também ela geradora de uma outra ilusão, a de pertencer ao
core do topo de uma dada sociedade; (v) a costumeira existência nestas famílias
empresariais de um rol de inúteis que se alimentam da fama e das rendas de uma
posição, deixando ao “Tio Ricardo” a inteligência do processo; (vi) a capacidade de manter laços permanentes com a política; (vii) a
mobilização de todo o potencial inventivo da engenharia financeira dos tempos
mais modernos e da bandalheira impune da offshorização dos capitais,
sabe-se hoje com “relais” importantes como Angola e a Região Autónoma da
Madeira.
Tenho a impressão que sem o testemunho do desaparecido em parte incerta Sr.
Schneider nunca ficaremos a conhecer nos seus pormenores mais profundos essa
engenhosidade criativa. Mas, pelo teor que se vai percebendo da acusação
publicada, a culpa desta vez talvez não morra solteira, faltando ainda perceber
os contornos da cerimónia final.
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