sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

A ÚLTIMA LEITURA DE 2024

 

(2024, para além de ter sido um ano incómodo pleno de tempestades perfeitas que anunciam o pior para 2025, não foi para mim um ano particularmente rico em novas leituras, tamanhas foram as exigências das tarefas profissionais, cada vez mais consumidoras do tempo disponível após as horas de sono, hoje claramente mais necessárias do que no passado de todas as energias. O tema da compreensão do populismo e da degenerescência democrática na Europa e no mundo dominou esse panorama de novas leituras e cada vez mais também a história económica é convocada para compreender melhor o presente. A última leitura de 2024 vai neste último sentido. Está focada no período entre as duas guerras mundiais, 1919-1939, e é assinada pelo historiador E.H. Carr e tem por título “The Twenty Years’s Crisis, 1919-1939. A obra teve a sua primeira edição publicada em 1939 e a edição que li é uma reedição desta obra datada de 2016, enriquecida com um longo prefácio e uma excelente introdução à obra de E.H. Carr de autoria de Michael Cox, professor emérito de Relações Internacionais na London School of Economics. O período estudado por Carr sempre me fascinou, sobretudo pelo potencial enorme de aprendizagem que o seu estudo proporciona, não numa perspetiva de procura preguiçosa pela analogia histórica fácil, mas pela relevância do contexto em causa. Aliás, a obra de Carr constitui, do ponto de vista das relações internacionais e da ciência política internacional, o complemento justo de uma outra obra, já abundantemente referida neste blogue, porque a considero fazer parte do conjunto mínimo obrigatório de leituras exigidas a um qualquer economista que preze a dimensão histórica da teoria económica. Refiro-me obviamente à obra de John Maynard Keynes, The Economic Consequences of the Peace, originalmente publicada em 1919.)

O meu interesse pelos escritos de E.H. Carr vem de há muito, mas nunca tinha lido sistematicamente e devidamente contextualizada a sua obra sobre este período. Quando numa leitura rápida de The Road to Serfdom de Hayek, publicado em 1944 anotei que Carr era considerado por Hayek um dos mais perigosos adversários da liberdade política e do liberalismo económico no Reino Unido, sobretudo devido ao seu apreço pelo planeamento económico e pelo estudo aprofundado da União Soviética no plano económico dos primeiros planos quinquenais, o meu interesse pela obra de E.H. Carr aumentou em rigorosa e inversa correspondência com as acusações de Hayek.

Mas o interesse da presente obra de Carr não está nessa abertura ao planeamento económico e à sua capacidade de então de compreensão do modelo económico soviético. O interesse está no estudo aprofundado desse período entre as duas guerras e no esforço interpretativo desesperado do autor de pensar as relações internacionais num modo tal que contribuísse para a não reedição da guerra, como afinal veio a acontecer com o início da Segunda Guerra Mundial.

Tem aqui interesse recordar os três fatores críticos que poderiam segundo ele transformar uma crise potencial numa crise perigosa e ameaçadora: (i) a existência de estados poderosos e ressentidos situados fora da ordem internacional; (ii) uma disrupção profunda e sustentada do funcionamento da economia global; (iii) e finalmente a não vontade ou incapacidade de qualquer potência singular ou hegemónica para organizar a ordem internacional. O que temos neste tríptico de fatores é uma espécie de teoria geral sobre a estabilidade e a instabilidade globais e na prática sobre as razões pelas quais os sistemas internacionais podem colapsar.

Confesso que não sou um adepto fervoroso sobre as analogias históricas de tempos distintos, mas é de facto impressionante a atualidade deste tríptico de fatores adaptados à ordem internacional de hoje, a saber: estados poderosos e ressentidos fora da ordem internacional ou em risco de serem a isso conduzidos; disrupção evidente da economia global; e indeterminação sobre a hegemonia americana, com gente interessada (Musk e seus muchachos e comparsas) em substituir essa hegemonia pelo poder dos negócios e da tecno-economia. Considero arrepiante esta similaridade.

Carr, tal como Keynes (embora com credos ideológicos e económicos opostos), era particularmente crítico do modo como as negociações das reparações da Primeira Guerra Mundial colocaram a Alemanha numa situação crítica de solvência impossível, cujos problemas haveriam no quadro de uma trajetória tipo tempestade perfeita de conduzir à ascensão do nazismo. Mas o que é notável no tríptico de Carr é a sua consistência interna e a sua profunda atenção ao tema do presente entendido como uma combinação de história e poder.

Um outro tema amplamente desenvolvido no livro é o tratamento aprofundado do eterno conflito entre utopismo e realismo na política das relações internacionais. O capítulo segundo da obra é dedicado ao tema Utopia e Realidade e constitui um verdadeiro tratado de sabedoria aplicada às relações internacionais. Nas palavras do próprio Carr: “A antítese entre utopia e realidade – um balanceamento entre evoluir e afastar-se do equilíbrio e nunca verdadeiramente atingi-lo – é uma antítese fundamental que se revela em muitas formas de pensamento. Os dois métodos de abordagem – a propensão para ignorar o que existiu e o que existe em favor do que deveria ser e a propensão para deduzir o que deve ser a partir do que existiu e do que existe – determina atitudes opostas relativamente a qualquer problema político”. A luta de sempre entre imaginar o mundo desejável para desenhar uma dada política e conceber uma política para se ajustar às realidades do mundo está aqui representada nestas palavras de Carr. 

O historiador esforça-se ao longo de toda a obra por demonstrar que a solução não está em responder a um qualquer dos extremos em confronto, mas está antes em conseguir uma combinação se possível equilibrada entre os mesmos.

Só este tema do utopismo e do realismo em política internacional, mas não só nessa, também na política interna, conduzir-nos-ia a uma imensa variedade de posts. A refundação da esquerda democrática anda por este tema e a procura de uma nova ordem internacional que responda positivamente ao tríptico de Carr são exemplos dessa aplicação possível.

Mas não pude deixar de pensar no que pensaria o historiador e o também diplomata e especialista de relações internacionais numa paz possível para a Ucrânia, afastando a hipótese de uma Terceira Guerra Mundial. Talvez um diplomata qualquer tenha lido a obra de que vos falo hoje e procure dar sentido às negociações possíveis. Mas, rapidamente e em jeito de autocrítica sou levado a pensar que não estou a encontrar o ponto certo de equilíbrio entre utopismo e realismo.

O que é preocupante é que o Tratado de Versalhes que definiu as reparações e indemnizações da Primeira Guerra Mundial e as condições de fim da Guerra Fria e ameaças atuais à paz internacional são contextos que podem conter a sua própria destruição. Versalhes culminou na Segunda Guerra Mundial e na ascensão do nazismo. O que nos espera na disrupção atual?

Por aqui se pressente o pessimismo das minhas previsões para 2025.
 

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