sábado, 14 de dezembro de 2024

AINDA A METÁFORA DOS FLUXOS E DOS STOCKS

 

(Numa das semanas passadas, tive de realizar no EuroParque em Santa Maria da Feira uma intervenção centrada nos resultados da avaliação de um dos programas mais importantes do PT 2020, o então designado Programa Operacional do Capital Humano, que centralizava naquele período de programação praticamente todo o apoio do Fundo Social Europeu +, FSE +, às políticas públicas de educação, formação e aprendizagem ao longo da vida. Essa sessão representava a edição anual do evento promovido pelo agora designado Programa Pessoas do atual período de programação PT 2030. Na sessão inaugural desse evento, antes do painel em que se concretizou a minha intervenção, tive a oportunidade de ouvir o Secretário de Estado atual da pasta da Educação, Alexandre Homem Cristo, personalidade bastante conhecida pelos seus inúmeros trabalhos sobre educação, regra geral publicitados pelo jornal Observador. Das palavras do Secretário de Estado retive sobretudo o seu alerta para a necessidade da qualificação dos adultos em Portugal não ser desvalorizada. Essas palavras são relevantes e oportunas e correspondem aliás a uma das grandes conclusões da nossa avaliação do referido Programa. Tais palavras têm um significado ainda mais importante quando a opção do então governo de Passos Coelho foi o de iniciar o período de programação do PT2020 com uma aposta clara na qualificação inicial de jovens e na sua empregabilidade, desvalorizando claramente a formação qualificante de adultos. Aliás, essa desvalorização estava em linha com o desmantelamento de algumas das instituições relacionadas com a formação de adultos e com as hesitações em retomar o domínio das Novas Oportunidades, agora centradas na intervenção dos Centros Qualifica. De facto, a inércia das baixas qualificações atingiu várias gerações e constitui por isso um fardo pesado na população ativa empregada e desempregada, reclamando a procura de um equilíbrio quase permanente com a qualificação inicial de jovens, essa claramente em andamento de qualificação crescente.)

 Quando um governante tem um discurso tão claro como este, sobretudo quando ele corrige posições passadas das formações políticas que apoiam o atual governo em funções, é saudável e promissor, exigindo monitorização futura de saber se as palavras se repercutem em atos e decisões de política pública consequentes e em linha com esse princípio da não desvalorização da formação de adultos. O peso da inércia é tal que considero que a sua superação não é obrigação apenas dos poderes públicos. Entendo que as empresas e os empresários portugueses têm de fazer mais em matéria de criação de condições para que os seus trabalhadores adultos empregados possam frequentar com maior agilidade as ações de formação e sobretudo criando estímulos remuneratórios para a formação seja entendida como uma opção recomendável.

Não quero especular, mas é bem provável que o Secretário de Estado tenha tido conhecimento antecipado de um importante relatório recentemente publicado pela OCDE, designado de “Do Adults Have the¬Skills They Need to-Thrive in¬a¬Changing World?” (Terão os adultos as competências necessárias para serem bem-sucedidos num mundo em mudança?). O Relatório corresponde ao survey das qualificações (competências) dos adultos reportado a 2023 e constitui a evidência mais recente do peso da inércia das baixas qualificações dos adultos em Portugal, tudo isto apesar dos avanços conseguidos em matéria de formação de adultos, sobretudo quando se procurou corrigir o desvio do início da programação do PT 2020 favorável à qualificação inicial de jovens.

Os níveis de competências são classificados em seis escalões (do nível 1 ao nível 5 e considerando ainda um nível abaixo de 1. Para compreenderem a gravidade da inércia das baixas qualificações de adultos em Portugal, reproduzo aqui o que devemos entender por estar abaixo do nível 1 e nos níveis 1 e 2. Como é óbvio, a leitura do relatório é recomendável para compreender o que devemos entender pelos níveis mais elevados 3, 4 e 5.

Assim, citando no que diz respeito às competências de literacia:

•    Abaixo do nível 1 – “Estes adultos são capazes de processar o significado ao nível da frase ou juízo. Considerando uma série de juízos que aumentam a sua complexidade, sabem dizer se um dado juízo faz ou não sentido seja em termos de plausibilidade no mundo real (exemplo de frases que descrevem acontecimentos que podem ou não acontecer) ou em termos da lógica interna da frase (frases com ou sem significado). Muitos dos adultos a este nível são também capazes de ler parágrafos curtos e simples e, em certos pontos do texto, especificar que palavra entre duas tem sentido e é consistente com o resto da frase. Finalmente, podem ter acesso a palavras ou números isolados em textos muito curtos de maneira a responder a responder a questões simples e explícitas.

•    Nível 1 – Os adultos deste nível são capazes de localizar uma informação numa página de texto, identificar um link de uma página de internet e identificar um texto relevante entre múltiplas opções quando a informação relevante é explicitamente sugerida. Sabem interpretar o significado de textos curtos, assim como também entender a organização de listas ou múltiplas secções numa única página. Os textos deste nível podem ser contínuos, descontínuos ou mistos e estarem localizados em ambientes impressos ou digitais. Tipicamente, abrangem uma única página até 100 palavras e com reduzida ou nula informação de distração. Os textos não contínuos têm regra geral uma estrutura de lista (tal como o resultado de um motor de busca) ou incluir um número pequeno de secções independentes, possivelmente com ilustrações gráficas ou diagramas simples. As tarefas a este nível  envolvem questões simples com alguma orientação acerca do que tem de ser feito e um processamento único. Existe uma relação   direta e óbvia entre a questão e a informação a procurar no texto, embora algumas tarefas exigem a análise de mais do que informação.

•    Nível 2 – Neste nível, os adultos são capazes de identificar e compreender informação em textos mais longos com alguma informação de distração. Sabem navegar em textos digitais simples com múltiplas páginas para aceder e encontrar a informação solicitada a partir de várias partes do texto. Podem compreender parafraseando ou fazendo inferências, baseados numa única ou em fontes adjacentes de informação. Estes adultos podem considerar mais do que um critério ou restrição na seleção ou gestação de uma resposta. Os textos podem incluir vários parágrafos distribuídos ao longo de uma página mais longa ou poucas páginas, incluindo sítios web simples. Os textos não contínuos podem involver uma tabela a duas dimensões ou um simples diagrama d efluxos. Aceder à informação pretendida pode exigir a utilização de dispositivos de sinalização ou de navegação característicos de textos mais longos ou digitais. As tarefas e os textos podem lidar com situações específicas e não familiares. As tarefas exigem que quem responde tenha de realizar equivalências entre o texto e o conteúdo de informação, algumas vezes baseadas em instruções longas”.

Vão-me desculpar esta longa maçada, mas ela é necessária para compreender os resultados um pouco arrasadores que decorrem dos resultados encontrados para aos adultos portugueses.

Para uma taxa de respondentes que é das mais baixas do survey (39%), Portugal aparece no grupo de países com uma posição consistentemente abaixo da média da OCDE para todos os tipos de competências (literacia, numéricas e adaptativas em termos de resolução de problemas). A relação entre as competências numéricas e de literacia é muito forte (ver gráfico acima).

No que respeita às competências adaptativas, para um score médio na OCDE de 250,6, Portugal fica-se pelos 233,4, agravado quando nenhum dos pais do adulto tem informação secundária (225,1) e francamente melhor quando um dos pais tem educação superior (270,3).

O post já vai longo e não há condições para explorar em maior profundidade o relatório OCDE. Mas há um padrão consistente nos três tipos de competências trabalhadas pelo relatório. O país está sistematicamente abaixo da média da OCDE. O que significa, no fundo, o peso da inércia das baixas qualificações. Este não é um problema que se resolva passando-o para debaixo do tapete. Desistir da qualificação deste universo é fortemente penalizador da qualificação necessária da sociedade portuguesa. E, repito, não é um problema apenas a cargo das políticas públicas. As empresas portuguesas têm um papel a desempenhar na criação de estímulos para que estes adultos procurem a via da qualificação pela formação, seja contribuindo para a cobertura dos custos de oportunidade que todo o adulto enfrenta, seja abrindo caminho a que haja retorno dessa formação. Mas esse é tema para outras conversas.

Nota final: O Jornal Público dedicou a este relatório um excelente artigo de divulgação, datado de 10.12.2024.

Sem comentários:

Enviar um comentário