terça-feira, 24 de dezembro de 2024

LOGÍSTICAS NATALÍCIAS VARIÁVEIS

 

(Um bicho do buraco tendencial como eu não aprecia lá muito que o aconchego do Natal tenha de ser gozado fora do ninho, principal ou secundário lá para as bandas de Seixas. Mas as famílias alargam-se, os ramos diferentes dispersam-se pelo país e, no nosso caso, calha que só nos anos ímpares a família mais próxima possa reunir-se. Nos anos pares, como este, a opção é simples, ou um Natal reduzido aos dois companheiros ou realizado fora do ninho, para poder gozar pelo menos a companhia de um dos filhos e netos associados. Entretanto, também é verdade que a idade vai avançando e que a organização dos grandes encontros familiares é cada vez mais custosa em termos de esforço humano, porque nem todos têm o dom da ajuda especializada. As Mães e as Avós continuam a sustentar predominantemente todo este processo e é importante que se recorde este facto. A igualdade plena de género ainda é uma utopia, mesmo nas famílias que se reclamam de pensamento mais moderno e avançado. Pois assim é e lá terá de ser fora do ninho que este Natal se cumpre. E não se trata de um Natal qualquer. 2024 foi de facto um ano atroz para o sofrimento humano. Os Ucranianos continuam a resistir à brutalidade de uma invasão. O genocídio da população palestina atingiu níveis impensáveis de horror e barbárie às mãos de uma liderança israelita implacável que persiste nos seus propósitos expansionistas, procurado oficialmente pelo Tribunal Penal Internacional. Os europeus desavindos confrontam-se contraditoriamente com gente a leste que arrisca diariamente a vida e serem alvos de repressão para não deixar esmorecer a sua vontade de se juntarem ao projeto Europeu e, nem assim, conseguem compreender o alcance do que já obtiveram e a natureza das ameaças que pairam sobre o mesmo. O negacionismo climático reafirma-se apesar das evidências diárias da severidade do novo normal que nos aguarda serem cada vez mais insistentes e devastadoras.)

Embora há longo tempo me tenha afastado da prática e da fé religiosas, compreendo que o Natal desligado da mensagem de Belém “Glória a Deus no céu e paz na terra aos homens de boa vontade” perde muito do seu alcance e valor. A religiosidade pelas bandas do Ocidente vive dias difíceis e ainda há dias quando a Notre Dame de Pais foi aberta ao público, num prodígio colaborativo disciplinar e de diferentes profissões ou “métiers”, como dizem os franceses, todos compreendemos que aquela luz restituída a um símbolo da religiosidade ocidental era incapaz, apesar do prodígio da reabilitação, de recuperar o símbolo de religiosidade que irradiava no passado daquela Igreja antes de ser um equipamento. António Guerreiro escrevia há dias que a reconstrução da aura de sacralidade que associávamos à Notre Dame é de todo impossível nos tempos de hoje: “Da sua tripla dimensão – religiosa, política e patrimonial – só a segunda e a terceira permanecem”. Por estes tempos, a civilização ocidental incapaz de competir em sentimento de religiosidade com, por exemplo, a civilização islâmica, poderia pelo menos na perspetiva e em torno da dignidade e da decência humanas construir a sua própria resiliência à quebra dos valores e da cultura simbólica. É esse desrespeito pela decência e dignidade da pessoa humana que mais me perturba, sobretudo naqueles que estão sempre prontos a bater com a mão no peito em sinal de contrição, que vão regularmente à igreja e até frequentam a confissão e comungam regularmente. O sistemático desrespeito pela dignidade e decência humanas coexiste com essas práticas religiosas, erguendo uma contradição insanável.

Para lá das conflitualidades ideológicas, o menor denominador comum do respeito e defesa da decência e dignidade humanas aplica-se como uma luva aos desafios do mundo de hoje e é na perceção insanável de que comemoramos o Natal em coexistência com as mais atrozes negações da decência e dignidade humanas a muita gente que me perturba e incomoda.
Em confronto com esta evidência, todas as restantes querelas em torno de saber se o Natal poderia ser menos ou mais consumista ou mais ou menos sustentável são questões de menor importância.

Feliz Natal para todos os resistentes leitores deste blogue, seja ele comemorado no aconchego dos ninhos, ou obedecendo a logísticas variáveis para integrar a diversidade territorial da implantação familiar.

Quanto a 2025 ainda haverá oportunidade para nos próximos dias o desejar ou antecipadamente criticar. E tanta matéria haverá para celebrar esta última dimensão.

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