segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

NÃO ESTAREMOS A PEDIR DE MAIS AO ENSINO PROFISSIONAL?

 


(A história completa da introdução do ensino profissional em Portugal como modalidade de qualificação inicial de jovens está por fazer, o que não espanta pois está em causa uma mudança tardia no Portugal democrático. Por razões profissionais, convivi durante anos e anos com o velho desabafo em entrevistas e sessões públicas de que Portugal deixara indevidamente cair o ensino técnico-profissional do antigo regime. Não foi fácil recriar o ensino profissional num quadro distinto de igualdade de oportunidades, abrindo na qualificação inicial de jovens uma nova via de acesso, que pudesse ser alternativa à via dos cursos científico-humanísticos, sem que essa possibilidade significasse estigmatização e quebra de oportunidades de construção de uma carreira profissional. A experiência começou curiosamente com a emergência de escolas profissionais provenientes da sociedade civil, com parcerias fortemente ligadas aos meios local e empresarial e, só mais tarde, a criação dos cursos profissionais nas escolas públicas veio, com ajuda do Fundo Social Europeus em sucessivos períodos de programação, dar um enorme impulso à oferta dessa modalidade de qualificação inicial. O modo como estas duas ofertas, escolas profissionais privadas e cursos profissionais nas escolas públicas, têm convivido não será tema deste post, embora o possa ser numa outra reflexão. O tema de hoje é uma reflexão sobre o alcance do ensino profissional como via de qualificação inicial de jovens, inspirada pela publicação de uma infografia da DGEEC, Direção-Geral de Estatísticas da Educação e Ciência, que analisa a transição entre o ensino secundário e o ensino superior entre os anos letivos de 2022-23 e de 2023-24. A questão que orienta esta reflexão pode ser assim enunciada assim -estaremos a pedir ao ensino profissional o que realmente ele pode dar ou estaremos irrealisticamente a pedir coisas que ele não pode dar, pelo menos neste estádio do seu desenvolvimento?)

 A resposta a esta questão exige alguma contextualização.

A criação das primeiras escolas profissionais privadas e da sociedade civil assentava num racional muito claro. Pretendia-se desenvolver um ensino de qualidade de natureza mais prática e mais ligada à dinâmica concreta dos processos de trabalho e, com as parcerias de constituição das mesmas, visava-se criar melhores condições de empregabilidade, garantindo que as empresas acompanhavam de início o processo de qualificação desses jovens. De certo modo, o ensino dual do sistema de aprendizagem era a inspiração e pretendia-se agora fazer evoluir a formação de dupla certificação para níveis mais elevados de qualificação, designadamente o nível ISCED 4.

Não pode dizer-se que este racional tenha sido substancialmente alterado com a criação da formação de dupla certificação nas escolas públicas, designadamente com a criação dos cursos profissionais. Mas é um facto que o ensino profissional haveria rapidamente de ser considerado um instrumento poderoso de combate ao insucesso e abandono escolar, já que Portugal partia de valores algo vergonhosos na comparação com a União Europeia. A espantosa evolução positiva que o país teve nessa matéria, a ponto de ultrapassar a meta europeia dos 10% de abandono escolar, atingindo o valor de 6% (valor que temos tido evidente dificuldade de tornar sustentado), não pode ser dissociada do incremento da oferta de cursos profissionais e do número de jovens participantes e diplomados com esses cursos. Claro que no início foram identificadas más práticas de encaminhamento demasiado precoce de alunos do secundário com más prestações e as próprias escolas públicas foram forçadas a realizar adaptações a um tipo de oferta para qual a maioria dos docentes não tinha especial competência.

 Em simultâneo com este decisivo impulso da oferta, a procura social dos jovens e das famílias pelo ensino profissional foi evoluindo de forma bastante mais lenta, já que a estigmatização face aos cursos científico-humanísticos era demasiado profunda para desaparecer como que por magia.

Mas o entusiasmo político foi tal que a meta de estabelecer a paridade de participantes entre os científico-humanísticos e os profissionais e as formações e de dupla certificação em geral foi assumida e sabemos como tem sido difícil concretizá-la. A procura do ensino profissional tudo indica que terá entrado num “plateau” de evolução, sugerindo a exigência de um novo impulso de melhoria da oferta e de convencimento da procura que está longe de estar consumado. Em meu entender, projetando a situação atual, o tal “plateau” de evolução tenderá a manter-se.

No ponto de vista da oferta, o PRR avançou com uma medida excecional que foi apoiar a instalação de Centros Tecnológicos Especializados de suporte às escolas com cursos profissionais. O relevo indiscutível que esta medida veio trazer em termos de adaptação tecnológica das escolas está a ser relativamente ensombrado por duas evidências: muitas escolas estão com sérias dificuldades de concretizar os investimentos aprovados (a taxa de execução da medida é muito baixa) e a sua aprovação foi realizada a nível municipal sem qualquer articulação evidente com o esforço de concertação e racionalização regional da oferta de cursos profissionais que algumas CIM estão a realizar nos territórios NUTS III.

Os números que a já mencionada infografia da DGEEC nos anuncia não podem deixar de ser compreendidos à luz destas considerações. Assim, para os alunos dos cursos científico-humanísticos, 73% dos alunos que concluíram o secundário em 2022-23 estavam no ano seguinte a frequentar uma unidade de ensino superior – 24% não as frequentava; quanto aos alunos dos cursos profissionais, 78% não estava a frequentar o ensino superior – 10% apenas estava a frequentar uma unidade de ensino superior e 12% estava a frequentar um curso CET ou CTeSP. A divergência é inequívoca e avassaladora.

Entretanto, a chamada formação pós-secundária, inicialmente os CET (Cursos de Especialização Tecnológica) e depois os CTeSP (Cursos Técnicos do Ensino Superior Profissional) tinha surgido no horizonte e, tendo os CTeSp aparecido entre outros motivos para dar uma linha de continuidade de estudos aos cursos profissionais, pode dizer-se que não conseguiram inverter decisivamente aquela tendência.

Claro que os leitores mais avisados dir-me-ão que essa não propensão dos diplomados com cursos profissionais para prosseguir estudos no ensino superior terá como outra face da medalha positiva a sua empregabilidade.

 O meu ponto de reflexão consiste em expressar que estes números do não prosseguimento de estudos não me impressionam e não são surpresa para mim. Em primeiro lugar, os motivos que determinam a formação da procura do ensino profissional são exatamente os mesmos que podem justificar o não prosseguimento de estudos superiores. O apelo a uma formação mais técnica e prática e a melhoria das condições de empregabilidade não serão propriamente os apelos ideais a um prosseguimento de estudos superiores. Em segundo lugar, as melhorias de retorno de remuneração conseguidas com esse prosseguimento podem não ser estimulantes. Em terceiro lugar, é discutível que as instituições de ensino superior estejam preparadas e capacitadas para abrir portas a essas trajetórias de formação, sobretudo na medida em que as suas exigências de formação teórica de base podem ser incomportáveis e excessivas para a formação de base dos cursos profissionais.

Por isso, em resumo, não me parece que o não prosseguimento dominante para estudos superiores constitua o problema central da sua transição atual. A questão fundamental estará na combinação da melhoria das suas condições pedagógicas e de aprendizagem e o concomitante reforço da procura social para esses cursos, de modo a ultrapassar o tal “plateau” ou mesmo retrocesso de frequência. Afinal, não é de um instante para o outro que se cria um sistema dual de ensino sem estigmatizações associadas. Aliás, seria interessante analisar que taxas de prosseguimento de estudos superiores têm os CET e os CTeSP, já que algumas destas ofertas acontecem em ambientes de instituições politécnicas (prometo que regressaria a este assunto com evidência, acaso ela exista).

Todas estas considerações estão em linha com a minha ideia, já por repetidas vezes apresentada em público, de que o sistema educativo está numa decisiva transição, a sua evolução para um sistema de educação e formação, que não dispõe ainda de uma governação consequente.
 

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