Existe por aí disseminada a ideia de que Portugal é um monumento à especificidade. Existe ao nível de como nos projetamos como país, nunca tendo desaparecido a ideia de que somos um país único e singular, argumento ao qual se junta a verdade histórica de um país com existência longa e fronteiras bem definidas. Esta história foi perturbada pela perda do poder colonial, mas a propensão para especificidade é tão forte que se projeta no plano das organizações e dos setores, onde tudo parece ser específico e reclamar soluções próprias. Claro que muitas vezes a invocação da especificidade é um bom pretexto para manter a inércia da não mudança. Todo este introito se justifica porque até há bem pouco tempo predominou a ideia de que em matéria de extrema-direita até nisso haveria razões para acreditar na tese da singularidade específica. Existe aqui uma confusão lógica nefasta que consiste em confundir o período longo de diferimento com que as coisas chegam cá ao burgo, fruto da perifericidade e do atraso estrutural do país, com a ideia de especificidade. A dinâmica mais recente dos acontecimentos políticos mostra que, pese embora as diferenças observáveis entre o Chega e os partidos similares disseminados por essa Europa e mundo fora, o fenómeno da extrema-direita populista que baste, xenófoba, que transforma perceções falsas em realidade pretensamente objetiva, securitária para lá dos limites da razão está aí para português ver e seduzir os mais incautos e ressentidos com qualquer coisa que aflija as suas pobres e desinteressantes vidas.)
Para acentuar a inexorável similaridade, a propensão para que a influência política da extrema-direita transcenda em muito o seu peso eleitoral, maior ou menor, tem-se revelado em todo o seu esplendor. O governo AD tem-se esforçado e muito para se sobrepor aos impulsos do eleitorado que elegeu 50 deputados para o Chega no nosso Parlamento, adotando umas vezes mais disfarçadamente, outras vezes de modo mais descarado, as agendas do Chega. Mas essa fissura da tentação da cópia não incide apenas nas hostes das forças políticas que apoiam o governo da AD. Ela tem aparecido também entre alguns ilustres autarcas do PS, acagaçados pelo crescimento do Chega e receosos de que tais agendas lhes valham a perda do poder. Creio que os infelizes casos de Loures e de Alpiarça tenderão a repetir-se à medida que as lutas eleitorais mais acesas das próximas autárquicas. Bastará estarmos atentos e essas manifestações emergirão para demonstrar que a extrema-direita não precisa de governar, basta-lhe inspirar as agendas dos outros.
A operação policial no Martim Moniz em Lisboa, a sua mediatização e sobretudo o modo como ela foi justificada por diferentes membros do Governo e do grupo parlamentar do PSD é uma evidência solene de que o Chega não precisa de ter o ónus da governação. Basta-lhe inspirar os atos securitários do Governo em funções e, indiretamente, marcar a agenda para as próprias forças de segurança.
Na Alemanha, mais propriamente em Magdeburgo, um médico saudita, islamofóbico declarado e seduzido pelo programa de extrema-direita da AfD e tudo indica referenciado pelas forças de segurança sauditas que o terão transmitido às alemãs, resolve irromper a toda a velocidade por um dos mercadinhos alemães tão tradicionais na Alemanha, fazendo lembrar outros atos tresloucados de terrorismo urbano. Claro que para a dinâmica securitária em curso pouco importará que o saudita fosse islamofóbico e será entendido como carne no assador para extremar a sanha securitária e anti-imigração.
E estamos metidos neste cu de boi. A extrema-direita utiliza a democracia para se afirmar eleitoralmente, influencia as agendas da governação e nem sequer tem de decidir em matérias específicas de governação.
Os que pensavam que a pretensa especificidade de Portugal o defenderia dos malefícios da extrema-direita podem colocar as suas barbas de molho. E, neste caso, nem sequer com um significativo atraso de manifestação.
Sem comentários:
Enviar um comentário