terça-feira, 17 de dezembro de 2024

PARA MINIMIZAR OS RISCOS DA POLÍTICA INDUSTRIAL


(Uma das consequências mais visíveis da nova ordem económica internacional, é impressionante o número de vezes que ao longo da minha já longa vida de economista ouvi falar disto, é o regresso à reflexão dos economistas do tema da política industrial. Durante o apogeu do padrão neoliberal da globalização, o tema da política industrial era proscrito. O diretório europeu mais ortodoxo em matéria de política económica baniu o tema do ordenamento comunitário. Pela interposta figura da política de I&D, a política industrial aparecia timidamente, mas nesse tempo os diretórios europeus nem sequer ousavam pronunciar a palavra. Uns tempos depois, emergiu o tema da reindustrialização europeia, mais retórica do que substância, sobretudo porque continuava a impossibilidade. Falar de reindustrialização continuando envergonhadamente a ocultar a necessidade de regressar à política industrial era mais uma estranha invenção europeia. Entretanto, o tema da política industrial nunca desapareceu totalmente, sobretudo para quem sempre estudou os modelos de industrialização de países como a Coreia do Sul, Taiwan, a China e o mais recente “late comer” Vietname. Esses países praticaram políticas industriais pujantes, não estando aqui em discussão se os contextos em que o fizeram são ou não replicáveis. Obviamente que muitos desses contextos não o são e basta pensar na China para o compreendermos. Mas esse não é o ponto. O ponto relevante é a convicção de que a União Europeia concorria com países que não tinham colocado a política industrial debaixo do tapete e que não necessitavam de recorrer ao subterfúgio de a subsumir na política de I&D para a praticar abertamente e sem renegar a luta na divisão internacional do trabalho.)

Tudo isto haveria de mudar com a perceção da vulnerabilidade europeia face ao rumo que as cadeias de valor internacional estavam a tomar. Foi assim com a pandemia. Foi também assim quando Trump e depois a Administração Biden passaram a considerar a ameaça tecnológica chinesa como fator de grande vulnerabilidade para a economia americana. Foi finalmente assim quando a crise energética derivada da invasão russa da Ucrânia expôs a grande fragilidade da economia alemã face à sua dependência energética e à sua dupla dependência da economia chinesa, isto é, como fonte de destino de exportações alemãs e importação de produtos intermédios para a sua indústria.

Mas a grande machadada na desvalorização forçada da política industrial foi dada pela administração Biden quando pôs em marcha duas ações poderosas de política industrial – o Inflation Reduction Act orientado para a economia verde e o Chips Act destinado a revigorar o papel da produção de semicondutores americanos e assim reduzir a dependência americana de outros fornecedores de componentes eletrónicas e outras. Não existe ainda tempo suficiente para avaliar se a experiência americana fez ou não emergir a estranha presença de um “Entrepreneurial State” (na expressão feliz de Mariana Mazucatto) na economia americana, irredutivelmente ligada à dinâmica da iniciativa privada.

Reconhecer a importância da política industrial em todos os processos e estratégias de desenvolvimento não significa obviamente ignorar os riscos presentes numa tal opção. Nem todas as administrações públicas têm o mesmo poder de adaptação às exigências de um “entrepreneurial state”. É sempre arriscado termos burocratas a farejar as evoluções mais prováveis do mercado, substituindo-se ao sentimento e intuição empresariais. Mas existem diferentes formas de captar essa informação junto dos investidores empresariais. Independente de colocarmos os ovos certos em muitos ou poucos cestos, sabemos que a ideia da competitividade generalizada é uma completa ficção. Sabemos também das experiências asiáticas que as opções por novos setores dispõem de muito pouco tempo para sujeitar os resultados de tais opções aos ditames da divisão internacional do trabalho e do mercado global. Arrastar soluções sem as sujeitar esse confronto gera ineficiências, corrupção potencial e seguramente a negação do que é ser competitivo e inimitável. Sabemos também que é por vezes necessário trabalhar a importação de tecnologia para em torno dela construir uma especialização própria e de novo as experiências asiáticas demonstraram com clareza a força e razoabilidade dessa opção.

Pelos tempos mais próximos, assistiremos a um ressurgimento da investigação em torno das estratégias de política industrial. Os trabalhos de Dani Rodrik e de Stephanie Stancheva abriram caminho a uma vigorosa investigação sobre as condições de otimização da política industrial redescoberta (Réka Juhász, Nathan Lane, and Dani Rodrik, 2023). A projeção desses trabalhos na construção de uma política industrial europeia é particularmente desafiante. Em primeiro lugar, porque as exigências de coordenação de tal política são imensas. Veja-se, por exemplo, o artigo publicado no âmbito do FMI por três economistas (Alfred Kammer, Andrew Hodge e Roberto Piazza) que salienta com perspicácia tais exigências. Em segundo lugar, porque a União Europeia ainda é um universo de desenvolvimento desigual, sendo necessário acautelar nessa nova estratégia de política industrial as necessidades de ajustamento estrutural de economias como a portuguesa.

O que é relevante assinalar é que não há otimização possível da política industrial sem ter em conta os constrangimentos próprios de cada administração pública encarregada de coordenar o processo (Réka Juhász and Nathan J. Lane, 2024). Um exemplo extremo disso pode ser mencionado quando uma dada administração é consistentemente corrupta. Com toda a probabilidade, uma administração desse tipo a conduzir uma política industrial será um fracasso potencial.

Outras dimensões este ressurgimento da política industrial apresenta. Uma dessas dimensões é a existência de subsídios reembolsáveis para as apostas melhor-sucedidas, arcando o governo com os custos das apostas falhadas. Nesta aceção, a política industrial segue os rumos do capital de risco. Neste modelo, redobra a importância da capacidade das agências públicas se substituírem à iniciativa empresarial na descoberta das boas oportunidades.

Em suma, o ressurgimento está aí e, seguramente, a política industrial deixou de ser proscrita e de permanecer envergonhada. Para ser avaliada, obviamente.

 

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