(Na obra «Les Aveuglés – Comment Berlin et Paris ont laissé la voie libre à la Russie» de Sylvie Kauffmann, pioneiramente referenciada e analisada neste blogue, existe uma ampla cobertura dos acontecimentos da chamada guerra de Agosto ou dos 5 dias que opôs a Rússia, que chegou a invadir o território, e o governo legítimo da Geórgia, tendo como pano de fundo a posição pró-russa dos rebeldes separatistas da Ossétia do Sul e da Abecásia, que serviu de pretexto à invasão russa. A análise que Kauffmann dedica a estes acontecimentos é preciosa, pois além de mencionar com rigor o temerário aventureirismo do então primeiro-Ministro georgiano que decidiu precipitadamente intervir nos territórios rebeldes, explica as hesitações europeias, prenúncio do que mais tarde iria acontecer com a Ucrânia. Naquele caso, a invasão russa conseguiu ser revertida, mas a leitura atenta dos acontecimentos mostra que a reversão da invasão russa não foi de modo algum sinónimo do problema subjacente estar resolvido. Dezasseis anos depois, a Geórgia regressa a uma instabilidade estrutural que se manifesta numa sociedade e numa Presidente claramente favoráveis à aproximação europeia e num Governo pró-russo, que tem feito tudo para bloquear o processo de aproximação à União Europeia, produzindo mesmo legislação destinada a ratificar esse afastamento. A mera visualização das amplas manifestações de Tiblisi favoráveis à aproximação europeia mostra semelhanças notórias com as manifestações de 2014 em Kiev, que haveriam de precipitar a rotura com a Federação Russa. Mas o que é espantoso é que, estando os Europeus num claro clima de interrogação e dúvida sobre o alcance do seu próprio projeto, haja populações que estejam dispostas a lutar pela liberdade, pela rejeição do que o modelo pró-russo significa e pela valoração positiva do que significaria integrar a União Europeia. Não há melhor contradição que evidencie os riscos da perda da memória europeia do que esta singular onda de luta pela liberdade da Geórgia. Tanto mais que durante cinco dias, em 2008, os Georgianos puderam confirmar a brutalidade dos argumentos russos.)
A credibilidade das sondagens sobre o peso do sentimento de aproximação à União Europeia na sociedade da Geórgia pode ser questionável, mas as percentagens que têm sido conhecidas e publicadas por think-tanks internacionais são tão volumosas (em torno dos 80%) que aguentam todo o questionamento possível. Relendo a cobertura internacional dos acontecimentos não só em Tiblisi, mas progressivamente por todas as cidades georgianas, é possível confirmar que os fatores de dinamismo da sociedade georgiana estão com a aproximação europeia e contra a posição do Governo pró-russo que se escuda numa posição de não propriamente suspender as negociações, mas antes de reponderar as condições subjacentes. Com o fechamento pró-russo estão obviamente as zonas mais rurais e temerárias, em provavelmente a memória da União Soviética estará ainda viva. Não tenho informação recente sobre o posicionamento das regiões rebeldes e pró-russas da Ossétia do Sul e da Abecásia, mas extrapolando os acontecimentos de 2008 não será difícil imaginar que essas regiões poderão de novo assumir o papel que o Donbass ucruaniano de cultura russa desempenhou como pretexto para a invasão russa de fevereiro de 2022.
Quer isto significar que o desmantelamento da ex-União Soviética está longe de ter terminado os seus efeitos de instabilização do território.
A história parece repetir-se e, se os acontecimentos de 2008 podem ser explicados pelo aventureirismo de um líder georgiano que não soube medir as consequências dos seus atos, a questão central está na incapacidade europeia de dar respostas convincentes aos fatores de dinamismo e de liberdade que grassam por estas paragens. O que temos nós para oferecer a esta gente que preza a liberdade porque já experimentou a sua supressão? Dúvidas, interrogações, nacionalismos serôdios e bacocos e culto extremo pela autoridade.
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