(A publicação da sentença no chamado caso Pelicot ou das violações de Mazan encerra com sentimentos misturados a determinação corajosa de Gisèle Pelicot que denunciou à justiça a macabra violação sistemática a que foi sujeita pelo seu marido Dominique Pelicot, drogando-a e assegurando que amigos seus a violassem também, com filmagens associadas. Já não tínhamos dúvidas de que a natureza humana é capaz do melhor e do pior e, neste caso, ela desceu a níveis abomináveis. A coragem de Gisèle Pelicot em tornar o seu caso público, lutando por ele na justiça francesa, talvez merecesse um conjunto de condenações mais representativas do caráter macabro da submissão a que foi sujeita. Daí os mixed feelings dos resultados do julgamento. Claro que o marido violador não escapou à pena máxima, mas algumas das penas atribuídas aos participantes nos processos de violação sistemática ao longo de uma década sugerem, como o assinala o Libération e algumas organizações feministas que vieram prestar a sua solidariedade a Gisèle Pelicot, que as condenações por violação estão a preço de saldo. Ainda assim, a divulgação pública de todo o processo acaba por ser uma justa retribuição da coragem e determinação da vítima. É de facto necessário ter uma robustez moral apreciável para rememorar todo o processo, auxiliando a investigação e suportando a exposição de um julgamento. Apesar dos mixed feelings quanto ao teor das condenações, Gisèle Pelicot terá oferecido à sociedade francesa um enorme contributo para desconstruir os enganos de um machismo violento e, sobretudo, suster a perigosa desvalorização do significado macabro de uma violação.)
Para completar o significado que a coragem de Gisèle Pelicot pode representar será necessário que a própria justiça francesa possa ter aprendido com os mais de três meses de julgamento e sobretudo com as opções assumidas de condução das acusações, largamente alicerçadas na demonstração de que todos os violadores e assediadores não conseguiram evidenciar a evidência de consentimento por parte da vítima.
No recato dos seus pronunciamentos públicos sempre contidos e nunca panfletários, Gisèle Pelicot ainda deu provas de um humanismo esperançoso notável, quando afirmou que acredita que, num futuro próximo ou mais longínquo, homens e mulheres conseguirão viver num contexto de respeito mútuo inabalável. O humanismo de Gisèle é espantoso, mas a ocorrência de um caso como este mostra como a violência contra a mulher pode ser sistémica e bem profunda. Seremos tentados a dizer que depois deste caso nada será igual em matéria de violência contra a mulher e de condenação da violação como forma máxima de agressão. Mas só o tempo o dirá.
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