domingo, 29 de dezembro de 2024

JURADO Nº2

 


(Vá lá saber-se a razão pela qual um filme desta dimensão e qualidade aparece lançado apenas numa plataforma de streaming, a MAX ex HBO e é assim condenado a não passar por uma sala de cinema. Serão razões obviamente discutíveis, sobretudo porque a decisão é tomada essencialmente tendo em conta a sociedade americana e, por essa via, condena um filme desta qualidade a ser visto apenas em casa e apenas nas casas em que a MAX tem assinantes. De que filme estamos a falar? Falo do último filme do mestre Clint Eastwood, não sabemos se será ou não o seu último filme, até porque a longevidade criativa de Eastwood é notável, prosseguindo um caminho muito próprio, num registo que classificaria de Republicano à antiga, hoje que o partido de Eisenhower e outros Grandes está reduzido a farrapos pela ofensiva MAGA de Trump e seus afins. O Jurado nº 2 é uma história sobre a consciência de cada um e sobretudo uma parábola sobre a justiça e sobre o modo como nos posicionamos face à mesma.)

A história é contada magistralmente e com o rigor despido de formalismos próprio de Clint Eastwood, cada vez mais despojado de artifícios de imagem. Uma jovem aparece morta numa ravina de uma estrada caracterizada pela frequência com que acidentes com veados são aí registados. A reconstituição do período que antecede a morte mostra uma discussão violenta entre a jovem e o namorado, alguém com cadastro de violência e criminalidade, e a evidência de que o namorado terá seguido a jovem no seu carro quando esta decide numa noite de temporal desabrido regressar sozinha e a pé a casa. A acusação policial não consegue demonstrar que o namorado tenha seguido a jovem até ao local em que apareceu morta e uma acusação é construída em função da discussão anterior, do cadastro do namorado, da evidência de que a jovem terá sido seguida pelo namorado e pela indicação de uma testemunha que corrobora perante a política que o acusado foi visto no local do acidente.

A contradição dramática de toda a história resulta do facto de um dos jurados, Justin Kemp (notavelmente assumido por Nicholas Hoult) ter tido nessa mesma noite um embate com um vulto que tanto poderia ter sido um dos veados frequentes naquela estrada ou um corpo humano.

A partir dessa evidência, a luta incessante entre a consciência de culpa do jurado e a ideia de justiça domina todo o filme, luta essa que se transmite ao próprio corpo de jurados, no qual a aparente unanimidade de decisão de considerar culpado o namorado da jovem é lentamente desconstruída, com o jurado nº2 a exercer esse papel de colocação da dúvida na decisão. Em simultâneo, desenvolve-se uma outra dialética entre a advogada de acusação pública (que está em plena campanha para eleição para Procuradora), assumida também com um rigor notável por Toni Collette e o advogado de defesa.

Com o desfecho aparente de uma acusação por unanimidade do corpo de jurados (com o jurado nº 2 a sucumbir ao argumento dominante), a história parece encaminhar-se para um fim possível, com Justin Kemp a protagonizar uma cena de aparente felicidade familiar com a mulher e o filho recém-nascido, pressupondo o espectador que a má consciência o possa atormentar para todo o sempre. Um bater seco na porta da casa introduz na cena um sobressalto evidente e quando a porta se abre, a agora Procuradora e ex-advogada de acusação troca com o jurado nº 2 um longo diálogo sem palavras, que sugere que a justiça terá vencido na própria luta de consciência da Procuradora entre um caso encerrado e a reconstituição da verdade.

É um filme em que durante cerca de 1 hora e 54 minutos não há um plano supérfluo ou uma imagem que esteja a mais. É um Clint Eastwood cada vez mais depurado, como se a passagem do tempo lhe tivesse assegurado essa capacidade de filmar apenas o essencial, que no caso vertente é o desenvolvimento da dúvida de consciência moral do jurado.

Não imagino qual o número de espectadores que poderia ver este filme se ele não tivesse sido condenado aos limites de uma plataforma de streaming. Talvez até estivesse condenado a integrar aquele grupo enorme de filmes notáveis que não resistiram a uma semana ou duas de permanência do cartaz. Mas o valor de Eastwood para a história do Cinema justificaria outra decisão. Assim sendo, só me resta recomendar a quem tenha a assinatura da MAX que veja este filme, que nos oferece um Clint Eastwood no expoente do seu despojamento formal.
 

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