segunda-feira, 9 de dezembro de 2024

A AMBIVALÊNCIA DA QUEDA DOS DITADORES

 

(A queda do regime autoritário e repressivo de Bashar al-Asad na Síria, depois de cerca de 24 anos no poder de continuidade face à longa permanência do seu pai, confirma duas ordens de coisas, uma que a história frequentemente nos traz e outra mais contemporânea. A primeira ideia é que não existem regimes ditatoriais que se aguentem indefinidamente, mas sinto leitores a contrapor, então diga lá quando acabarão os regimes da Coreia do Norte e da própria Rússia?). A outra é que Putin deu passos para além da sua perna e está agora numa alhada de não poder combater em várias frentes. Asad tramou-se por isso, embora o exílio em Moscovo lhe tenha valido escapar-se da forca ou do fuzilamento como simbolicamente a queda das suas estátuas pelas zonas libertadas da Síria o representa. As imagens de libertação provenientes de Alepo, Damasco e outras cidades retratam essa explosão de alegria dos que sentem a situação de opressão mudar radicalmente, sendo aqui nova a atitude colaborativa do primeiro-Ministro sírio, talvez para salvar a própria pele, mas abrindo as portas a uma transição com os novos poderes. De todo esta processo, espantou-me há dias a firme segurança e o desplante diplomático com que o Erdogan alvitrou a chegada mais do que provável dos rebeldes a Damasco, parecendo confirmar que estes dispuseram de amplo apoio da Turquia, talvez esperançada em controlar ainda mais efetivamente a ameaça curda e estancar a debanda de população síria, a fugir da, guerra, em direção a território turco.)

 

Quando se visualizam as imagens da libertação síria de uma tão longa opressão chegam-nos à memória outras imagens de outras libertações, cuja felicidade foi relativamente efémera e que com a complexidade das realidades sociais e políticas pós libertação tendeu rapidamente a esfumar-se e a submeter-se a um banho frio de realidade e privação. Ainda não vi uma completa descrição da aliança rebelde vencedora, mas o grupo que se apresentou na televisão síria a anunciar que Asad tinha voado para fora do país (ver imagem abaixo) fala por si. Existe evidência de que se trata de grupos sunitas islâmicos que andaram pela Al-Qaeda, mas imagino que a complexidade da composição ainda seja maior. O líder Al-Jolani, desvinculado da Al-Qaeda em 2016 parece emergir como alguém mais moderado.

O mapa que o sempre avisado e informado Nuno Rogeiro trouxe este domingo ao Leste Oeste da SIC Notícias de domingo é esclarecedor. A dimensão do território sírio a que a implantação dos curdos correspondia é assaz impressionante. Sabe-se que a presença curda tende por estes dias a ocupar zonas de vazio da presença iraniana. Mas aquele mapa suscitou-me uma profunda interrogação. O que pretende a Turquia com o apoio declarado ao grupo rebelde? Como é que vai ser tratada pelos rebeldes uma área de influência tão grande da população curda nesta Síria libertada? É de um acantonamento curdo que Erdogan anda à procura? Ou pretende simplesmente apoiar forças que lhe garantam um melhor controlo da ameaça curda?

Além da proeminente vitória turca, de resultado posterior ainda dependente do modo como a questão curda vai ser tratada pelo novo poder em formação, há duas evidências que ressaltam de todo este processo. O islamismo sunita emerge em crescendo, contrastando com a queda, que pode ser temporária, da influência xiita, determinada sobretudo pela defensiva em que o regime iraniano se encontra. Imagino que este rebalanceamento de forças possa mudar significativamente a geopolítica do Médio oriente e de toda aquela zona. Por outro lado, a força de guerra russa parece exclusivamente concentrada na Ucrânia, levantando-se a dúvida de saber qual vai ser o destino das três bases navais que os russos tinham no noroeste da Síria. Mas é de facto impressionante a rapidez com que a cavalgada rebelde se concretizou, numa queda precipitada de cidades umas atrás das outras, até Damasco. A sucessão acelerada de quedas mostrou que o regime de Asad estava preso por pinças.

Permanece a interrogação de como o principal líder rebelde, Abu Mohammad al-Jolani, fundador da Jabhat al-Nusra e que procura apagar a memória da sua integração na Al-Qaeda síria, irá relacionar-se com as restantes forças que integraram o movimento rebelde, tais como por exemplo o próprio Exército Nacional Sírio opositor de Asad e apoiado pela Turquia, outras forças com o apoio da Jordânia e o Partido Islâmico do Turquistão que tem integrado tudo o que é força rebelde por estas paragens (link aqui).

Espero que as imagens de felicidade da libertação possam prolongar-se algum tempo mais do que este despertar representa. Noutros casos, os desmantelamentos de regimes ditatoriais nem sempre tiveram a consolidação do caso português. Espero ainda que a criação de um novo estado teocrático, desta vez de inspiração sunita esteja em formação.

Quanto aos EUA, o modo como Trump despachou politicamente a saída do país de Bashar al-Asad, Putin cortou-lhe o apoio, diz bem da nova política externa americana que está em formação. Preparem-se.
 

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