(Embora no
Fronteiras XXI se esteja sempre à espera de uma incursão do Carlos Daniel pela
tática futebolística, há
sempre momentos relevantes de debate público, o que já não é pouca coisa para
os tempos televisivos que correm …)
A composição do debate a três sobre a dívida do programa de 5 de abril
revela alguma atenção na sua escolha pela direção do programa. Fernando
Alexandre é um dos nomes mais promissores para o rejuvenescimento da análise da
economia portuguesa nos últimos tempos, veja-se a sua participação na obra “A Economia Portuguesa na União Europeia:
1986-2010”, Actual Editora, Coimbra, 2014. Ricardo Paes Mamede é controverso, ponto, embora me pareça por
vezes que lhe falta consistência e conhecimentos macroeconómicos para sustentar
a controvérsia e Miguel Cadilhe é incontornável pela originalidade de algumas
posições bastante heterodoxas para um economista na área do PSD.
Vou-me concentrar em dois momentos do programa, aqueles que em meu entender
suscitaram as matérias nas quais o debate realizado soube a pouco.
O primeiro aspeto prende-se com a atenção que Fernando Alexandre e alguns
colegas têm dedicado ao processo tendencial de afetação de recursos observado
na economia portuguesa na década que precedeu a intervenção da Troika em
Portugal. É um aspeto pouco estudado na economia portuguesa e a atenção que o
grupo de Fernando Alexandre lhe tem dedicado minimiza essa lacuna. Na sua
intervenção, FA deu conta da sua perplexidade para explicar o comportamento da
banca portuguesa e de outros investidores institucionais no setor
imobiliário-infraestrutural, visível no modo como o crédito cresceu
desmesuradamente em direção aos não transacionáveis e dentro destes ao binómio
imobiliário-construção. Segundo ele, ao contrário do registado noutros países
europeus em que a bolha imobiliária era manifesta com rendibilidade crescente
até ao estouro final, o comportamento do investimento e do crédito em Portugal
não teria explicação dada a quebra de rendibilidade que vinha sendo observada
no setor. Não devemos descartar, como os factos nos têm sugerido, que a captura
do sistema bancário pelo capitalismo rentista e de compadrio à portuguesa
explique algum comportamento irracional do crédito, do qual estamos hoje em
parte a pagar custos elevados. Mas, ao contrário do que FA sugere, penso que,
apesar da “bolhinha” e não bolha imobiliária que se viveu em Portugal, a
corrida do investimento (e do crédito a alavancá-lo) ao
imobiliário-construção-infraestruturas não pode ser dissociada da corrida para
os não transacionáveis e essa teria de ser suportada por padrões de preços
relativos e de rendibilidade que a favoreciam. Pena foi que o debate não
tivesse esmiuçado esta dimensão, pois parece-me que a perplexidade de FA
tem afinal explicação. A afetação de recursos que desequilibrou a economia
portuguesa, inclinando-a para os não transacionáveis, dificilmente poderia ser
explicada por uma irracionalidade de cálculo económico. Vários fatores
contribuíram para a sua consumação: a maior comodidade da almofada dos não
transacionáveis face aos constrangimentos de competitividade nos
transacionáveis; o efeito alavanca que os Fundos Estruturais provocaram em
termos de infraestruturas; a ligação de cumplicidade intrínseca que existe
entre o turismo e o imobiliário; as condições salariais e de desqualificação de
mão-de-obra que sempre potenciaram a entrada no setor da construção civil de
empresas que dificilmente respeitam os critérios mínimos para serem designadas
de empresas. Estranhei por isso que Fernando Alexandre não tivesse colocado a
questão dos preços relativos entre transacionáveis e não transacionáveis, sem a
qual é difícil compreender a afetação de recursos da época.
O segundo momento relevante não podia deixar de estar concentrado na questão
da dívida. Todos estamos de acordo que é fundamental não limitar a questão à dívida
pública e ter em conta o endividamento de empresas e de famílias. Se não fora
por outros motivos, a desalavancagem da dívida das empresas e das famílias tem
consequências óbvias sobre a procura, diferindo investimentos e compras. E
neste âmbito emergiu a oposição entre Mamede e Cadilhe. O primeiro tem uma
perspetiva algo obtusa ao desvalorizar o tema da dívida pública segundo o
argumento de que o problema da dívida pública não existe enquanto tal e que é o
resultado da crise global e do seu impacto na economia. Sabemos que o governo
de Sócrates terá sido enganado por uma falsa e curta adesão das autoridades
europeias ao intervencionismo económico anticíclico que chegou a ser assumido
pela Comissão Europeia face aos efeitos recessivos da crise de 2007-2008. O
governo aderiu a essa orientação, mas a Comissão Europeia de sopetão mudou de
ideias e o governo português foi apanhado em contramão. Sabemos também que a
receita fiscal é particularmente sensível aos efeitos recessivos na economia. Mas
daí a admitir que não houve um destempero de finanças públicas em Portugal vai
uma grande distância e creio que a posição de Ricardo Pais Mamede não tem
consistência. O governo de Sócrates acaba por herdar um presente envenenado do
qual nunca se conseguiu distanciar. É em períodos de expansão económica que alguns
esforços de consolidação orçamental têm de ser concretizados. Precisamente, para
haver margem de manobra de políticas anticíclicas. Mas foi ele próprio um
agente do destempero de finanças públicas e a ideia de que o disparar da dívida
pública é fruto da inação da economia e não de más escolhas públicas não tem em
meu entender sustentação.
Acho que nesta matéria Miguel Cadilhe tem razão. O país não foi
sensibilizado para as escolhas públicas que a adequação do Estado ao potencial da
economia para gerar receita pública exige. Há por aí a peregrina ideia (que
aparentemente Mamede comunga) de que a configuração do estado em Portugal pode
ser definida em abstrato e independentemente do potencial do sistema produtivo.
Miguel Cadilhe invoca muito a reforma do Estado como necessária para uma
consolidação estrutural da despesa pública, mas fica-se por aí. E se calhar não
tem obrigação de demonstrar o que cabe às forças políticas no poder fazer. Mas
nesta questão partilho a sua preocupação.
Outra coisa será discutir como é que se ultrapassa o constrangimento da dívida,
que é mais sério do que o da dívida privada, embora este não possa ser
esquecido. Mas não tenho dúvida de estar mais próximo das posições de Cadilhe
do que das de Mamede. Atribuir o problema da dívida apenas a um efeito reflexo do
estado da economia é perigoso, embora se possa perceber as razões do pensamento
de Mamede. Mas ignorar que há escolhas públicas na governação e que essas
escolhas têm impactos diferenciados na dívida é nefasto para qualquer
alternativa de governação. É por estas e outras que o Bloco de Esquerda tem que
ser mantido a uma relativa distância do perímetro da governação, ainda que os
acordos de novas maiorias parlamentares, como o atual, sejam interessantes.
O problema do debate a que se refere o comentário é do ter sido quase exclusivamente feito numa perspetiva nacional. Penso ser também um dos grandes problemas do pensamento macroeconómico predominante. Já quase nade se pode pensar exclusivamente nessa perspetiva. por exemplo, a questão da evolução da população (em 2050 cerca de 40% da população ter mais do que 65 anos) e os problemas que levanta não pode ser pensada em termos nacionais. Sabemos que a educação é uma fatia importante da despesa pública. Faz-se, atualmente, um investimento grande a esse nível para que os benefícios dele venham a ser colhidos por quem em nada contribuiu para esse investimento. As formas de mitigção dos efeitos negativos deste tipo de problemas não pode ser pensada numa perspetiva nacional. Apesar das críticas que podem ser feitas ao pensamento de Mamede, ele pareceu-me ser o único a procurar escapar a esta perspetiva de estado-nação, ainda predominante mas nada menos que vetusta.
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