sábado, 22 de abril de 2017

VAI O GOVERNO AGUENTAR-SE?




(Vai por aí algum clamor acerca do modelo que tem sustentado o governo do PS com apoio parlamentar à esquerda, e os mais afoitos não hesitam em classificar de austeridade à esquerda o que vai sendo praticado, e no meio da sua finura António Lobo Xavier lança a provocação de que será talvez mais estranha a negação absoluta do PSD do que propriamente o apoio de PCP e Bloco de Esquerda…)

A apresentação pelo Governo do Programa de Estabilidade e Crescimento à Assembleia da República e em Bruxelas trouxe para a consulta pública uma outra via para se compreender como é que o governo de António Costa se projeta no horizonte temporal de médio prazo. As próprias exigências do PEC 2017-2021 obrigam o governo a comprometer-se com expectativas que vão para além da gestão política do dia-a-dia, designadamente a arbitragem com as formações à esquerda do PS que o apoiam em torno de questões que vão mantendo PCP e Bloco de Esquerda na antecâmara do poder.

A determinação de Mário Centeno em consolidar definitivamente a trajetória de redução do défice público, o que equivalerá a manter excedentes primários e estruturais para manejar o fardo dos juros da dívida gerou por aí um grande alarido e aqui del-rei o governo do PS estaria a prosseguir uma via de austeridade à esquerda. Nas condições atuais em que a União Europeia se arrasta e em pleno ciclo eleitoral por essa Europa fora, não se percebe que outra estratégia o governo poderia seguir, reduzindo a probabilidade de choques externos ampliados por descontrolo orçamental. Para a direita e seus comentadores de estimação, mais ou menos inteligentes, o governo estaria a fazer o mesmo, embora com apoio à esquerda. A contradição a que o PCP e o Bloco de Esquerda estão expostos por apoiar no parlamento o governo de modo a viabilizar a sua continuidade seria explicada por essas vozes pela questão do acesso ao poder.

Entendamo-nos porque por aqui há muita poeira no ar. Em meu entender, a continuidade de uma política de consolidação orçamental, não recessiva dado o ritmo de crescimento (moderado) atingido ou projetado, é a que melhor se ajusta ao estado atual da União, ganhando tempo e adiando qualquer cedência de flanco a choques externos, que podem acontecer. Mas está o governo a fazer o mesmo que faria um governo PAF reeditado? Pura mistificação e análise pouco profunda. Vejamos por que razão tal avaliação é errada e fraudulenta.

Para o explicar tenho de ir um pouco mais atrás. Como já aqui escrevi, o programa inicial do PS (do grupo coordenado por Mário Centeno) tinha uma estratégia focada no relançamento do consumo interno que só poderia funcionar como estratégia de transição para uma nova trajetória de crescimento. Mais tarde ou mais cedo, o alento do consumo interno teria de ser suplantado pelo da procura externa e desejavelmente com ganhos de quota em mercados externos representativos e com ganhos de produtividade face à média da União. O programa económico que tem hoje aguentado o governo não é, como é óbvio, o modelo de Centeno, o original. Mas escreveu-se direito por linhas tortas. O programa original de Centeno não aguentaria manter-se para além de uma lógica de transição. Consolidação orçamental, alguma austeridade? Talvez. Mas não seguramente a mesma austeridade a que a Troika e o PAF sacrificaram a economia portuguesa. Podem dizer-me que os 2% de défice têm muito de não canónico. É verdade. Mas nenhum dos ministros das Finanças anteriores a Centeno pode ser considerado donzela púdica e sem pecados. E sobretudo uma trajetória de consolidação orçamental (não tão estrutural como uma revisão da despesa pública manejável a colocaria) que é conseguida com uma substancial reposição de poder de compra, o que não é coisa pouca. E parece-me que é isto que a população portuguesa em geral interiorizou bem e os factos têm-lhe dado razão. Afinal a caminhada para algum equilíbrio de contas públicas tem sido conseguida sem usurpação de rendimento, mesmo que a carga fiscal não esteja propriamente a descomprimir a fadiga fiscal dos portugueses que pagam impostos. Por isso, embora possa falar-se de austeridade, seja porque persistem vestígios dos cortes anteriores, seja porque continua a haver aperto fiscal, ela é de outra natureza e seguramente não é percebida pela população como o foi a austeridade anterior.

Bem podem o PSD e o CDS pregar o que quiserem que não conseguem retirar da cabeça dos portugueses que afinal era possível consolidar as contas públicas de outra maneira. Ora, PCP e Bloco de Esquerda perceberam bem, finalmente, que ignorar essa perceção do seu eleitorado corresponderia a uma negação ainda mais descompensada do que a do PSD. E o que é fundamental é a questão do timing de alteração das expectativas, de modo a permitir que ela chegue ao comportamento do investimento empresarial. Bem podem também por isso alguns representantes do patronato mais implicados em políticas de direita, o imutável Ferraz da Costa é talvez o melhor exemplo, grunhir o que entenderem, mas isso não vai afetar pequenos e médios empresários que estão a ganhar confiança com a situação.

Mas está a despesa pública efetivamente consolidada? Penso que não está, as escolhas públicas não estão totalmente questionadas e há espaço para se estabilizar um padrão de despesa pública que faça escolhas e que não convite ao improviso.

Está o perfil de especialização da economia portuguesa efetivamente resolvido e os padrões de inovação e produtividade estão a guiar plenamente os rumos da exportação nacional? Também não e há também espaço para uma progressão nesse domínio que envolva uma frente de empresas mais vasta.

Correspondem estas questões à ladainha das reformas estruturais? Não, nem por sombras. O conceito de reformas estruturais do tipo OCDE ou Comissão Europeia, particularmente da primeira, aponta para outras direções e para muito boa gente sem grandes escrúpulos isso significa apenas desregulamentação do mercado de trabalho. Tal como é apresentado, o conceito de reformas estruturais faliu, não conduz a qualquer padrão coerente de desenvolvimento, está gasto, é puro blá-blá.

O que não significa que a economia portuguesa não esteja carenciada de mudança estrutural. Mas isso é outra conversa.

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