Não sei se é de mim ou se é de facto realidade que este ano cinematográfico não impera por uma especial atratividade. De uma forma ou de outra, valerá certamente a pena chamar a atenção dos frequentadores de salas para um ótimo filme brasileiro que anda por aí: escrito e dirigido pelo pernambucano Kleber Mendonça Filho, Aquarius é também a oportunidade de revermos Sónia Braga em muito bom plano – quatro décadas depois de Gabriela! – e interpretando Clara, uma viúva e mãe de três filhos de 65 anos que se vê confrontada com o desafio pessoal de resistir às pressões da especulação imobiliária para que abandone o seu velho apartamento junto ao mar, na Avenida Boa Viagem de Recife – um confronto desgastante e perturbador que leva Clara a revisitar a sua vida passada e a refletir sobre o seu presente e o futuro que pode escolher.
Entrevistada sobre o filme, Sónia explicou que, para si, “Aquarius é o Brasil. É aquele edifício, com os seus cupins [térmitas] que o vão destruindo lentamente. E é muito claro quem os coloca lá dentro. Quem contamina o prédio é um tipo de sociedade que não se conforma que o país possa viver em democracia. Um tipo de sociedade que não admite que as pessoas tenham direitos e lutem por eles.” E também que se trata de um filme sobre o amor: “Ela é uma mulher que só quer preservar
o que é importante na sua vida. Os filhos, os discos, os livros, a casa em que sempre viveu e educou as suas crianças. A perseverança dela tocou-me, fez-me amar a sua vida.”
O realizador, por seu lado, definiu o filme como “de resistência”: “É sobre alguém que diz não, que tem a oportunidade de negar uma resposta. Muitas vezes, na sociedade e no mercado, não é de bom tom dizer não. Todos acham que Clara deveria aceitar a proposta de sair do seu apartamento, sobretudo o mercado. A resistência que filmamos parte logo da liberdade da personagem. Ela tem a liberdade de não querer ser comprada! E isso é um ato político.” Acrescentando: “O ponto de vista é sempre o de Clara. Este foi um princípio que me impus: estabelecer esse território interno e a ameaça que vem de fora.” E clarificando ainda: “No fundo estou a falar desta ideia: você está feliz na sua vida e alguém começa a julgar, por questões de mercado, que você não está bem. Como se isso fosse uma alucinação imposta. E então você começa a questionar-se: ‘será que está tudo certo comigo?’ (...) Quando você toma uma posição contra a ‘verdade estabelecida’, ou é xingado de ser do contra, ou tratam-no de louco. (...) Essa narrativa é tão primária que tira o oxigénio a qualquer possibilidade de discussão. Daí volto à sua palavra, dignidade.”
O filme tem ainda o picante de ter sido objeto de uma tramoia política que o afastou da representação brasileira nos Óscares e de ter entretanto concorrido à Palma de Ouro do Festival de Cannes, onde ganhou visibilidade o protesto, em pleno tapete vermelho e por parte de todo o elenco, contra o processo de impeachment à presidente Dilma.
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