domingo, 30 de abril de 2017

NUNO BREDERODE


A morte do Nuno corresponde para mim, como poucas ou talvez mesmo nenhuma, ao fim de um ciclo. Mas não me cabe de todo – nem tal quero tentar fazer aqui – o elogio que lhe é mais que devido ou tão-só o sublinhado das principais facetas da sua rica biografia pessoal e cívica. Lembrar o Nuno é trazer ao de cima toda a força da democracia e da liberdade, sobretudo de pensamento. Lembrar o Nuno é prestar tributo a uma geração de notáveis homens públicos e ao exemplo que foram dando aos que seguiram na sua esteira – sim porque lembrar o Nuno passa também por associá-lo ao modo como tão profundamente influenciou a formação política de muitos, entre os quais alguns grupos de rapazes e raparigas do Porto (salvé Zé Valente)! Lembrar o Nuno é, finalmente, ter-se a irremediável noção de que algo faltará para sempre naquela tertúlia da sua mesa 2 do “Procópio”.

O Nuno leva consigo, ainda, uma outra marca inapagável: a do modo como soube denunciar Cavaco incessantemente e desde a primeira hora. As suas inigualáveis crónicas no “Expresso” dos finais de 80 e inícios de 90 ficarão nos anais da história do nosso jornalismo político (vejam-se as principais no seu livro “Rumor Civil”). Parou um dia, quando deixou de sentir o impulso inspirador dos fundamentos que antes o moviam, mas uma década mais tarde confessava: “Não me custa a admitir que tenho muitas dores de alma, admito que sinto muito a sua falta [de Cavaco]. Agora, apesar de toda a dor, há algumas teses que nunca nenhum cavaquista contestou e que eu mantenho... A primeira das quais - e confesso que tem a ligeireza de uma equipa de primeiros-socorros - é aquela verdade indesmentível de que o rapaz foi tirado de Boliqueime mas que agora ninguém consegue tirar Boliqueime do homem. Penso que isto não se alterou, quando ele reaparecer lá trará Boliqueime. Mas a minha casa estará sempre aberta para ele.” E tinha inteira razão...

E o Nuno lá prosseguiu o seu caminho, o de sempre. Em 2008, por exemplo, escreveu o seguinte: “O mais digno de atenção, por mais revelador, foi o mais singelo: essa visão do mundo, da vida e da espécie que vem embrulhada na ideia de que, em democracia ou ditadura, "se está". Pois, nós bem sabemos. Mas é uma abordagem que sulca ondas melindrosas. Porque pressupõe distância e alteridade. A democracia não se vive e frui, como a ditadura não se sofre. Numa e noutra, está-se. Como quem diz: a gente nasce e logo vê. Logo vê o modelo de organização social e política em que nos foi dado viver. Paridos, olhamos em volta: se há liberdade, melhor, mas, se não há, a gente governa-se. Porque isso da liberdade, ou falta dela, é um dado. É um adereço rígido da própria Criação, entendida esta como tudo o que está - ou seja, tudo o que sempre foi, ligeiramente alterado pelos poucos menos e mais que a humanidade, laboriosamente, lá foi conseguindo introduzir. É contingência, é circunstância, e nada podemos (ou nos cumpre) fazer contra o que nos transcende e formata. Como já aqui escrevi, este capitulacionismo moral é maioritário em qualquer democracia acabada de instituir. E subsiste em qualquer democracia fresca de 30 anos. Porque, sem ele, a democracia - que pressupõe a maioria - não poderia existir. Ele molda o espírito dessa amarga e omissiva maioria com que os ditadores governaram, ainda que o hajam feito contra ela também. Mas, integrando um pacto histórico com a minoria que quis e soube resistir, faz parte do regime, com todos os direitos de cidade. Claro que tudo isto vai deixar de ser problema: os sexagenários de hoje - que tiveram 30 anos ou mais para se escolherem antes do 25 de Abril - são a última geração cujo está-se é revelador. E sempre sujeito ao normal, sereno e necessário contencioso das ideias.”

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