sábado, 3 de agosto de 2024

AS PALAVRAS QUE SÃO INSULTOS, OU TALVEZ NÃO, NO CORAÇÃO DAS ELEIÇÕES AMERICANAS

 

(Já compreendemos que a entrada em cena de Kamala Harris na corrida para as eleições de novembro próximo baralhou as contas e parece indiscutível que os Republicanos entraram em modo de reset, num ajustamento de posições que me surpreendeu estar a ser tão lento. Isso não significa que a tarefa dos Democratas seja um mar de rosas e sabemos que a candidata Kamala vai travar uma luta de titãs para unir o partido e conseguir o apoio da massa eleitoral que pode fazer a diferença. Estabilizar e segurar o eleitorado tradicional Democrata é essencial, mas isso não chegará atendendo ao estado de polarização a que a sociedade americana chegou nos últimos tempos. Por isso, tenho seguido com atenção tudo que seja reflexão que traga novos elementos de compreensão de uma disputa de cujo resultado o futuro do mundo livre depende. O economista blogger Noah Smith trouxe à discussão a invocação de uma palavra, “weird”, que tanto pode ser entendida como um conceito necessário à compreensão do mundo complexo em que a sociedade americana se transformou como uma palavra-insulto. O que é curioso é que a palavra tem estado no coração da recuperação de Kamala Harris nas sondagens e, por mais estranho que pareça, as tropas de Trump estão com dificuldade em lidar com este virar do prego que a campanha de Kamala protagonizou. Por estas e por outras, compreender as eleições americanas tem que se lhe diga.)

Dos meus conhecimentos de inglês weird quer dizer esquisito, estranho ou coisa que o valha. Desse ponto de vista, nem se trata de um insulto equivalente aos que Trump normalmente destila como veneno ou ódio em muitas das suas aparições públicas. Porque é que então a utilização da palavra por parte de Kamala Harris e da sua campanha mexeu tanto com os Republicanos? A explicação de Noah Smith é muito curiosa, chamando-me à atenção especialmente uma das razões por ele apontadas para explicar a aparente perturbação das hostes de Trump. Segundo Smith, para os Republicanos ser “weird” significa “estar fora do grupo”, o que para o partido pode fazer relembrar a sua total ultrapassagem em guerras culturais do passado, como foram as das décadas de 90, 2000 e 2010. Tal como Smith o explica, nos anos 90 ser “weird” equivalia a querer combater o conservadorismo instalado na sociedade americana, significava rebeldia, o que estava em linha com a tradição Democrata de abranger diversos universos de pessoas contra o conservadorismo então reinante na sociedade americana. Entretanto, à medida que os anos 90 avançavam e se caminhava para o novo milénio, grande parte dessas causas, como a aceitação das comunidades gay, culto da marijuana e o ateísmo passaram a ter uma grande aceitação na sociedade americana. Os seus defensores dificilmente poderiam ser considerados “weird”. Os estilos de vida alternativas praticamente deixaram de o serem, tamanha foi a sua disseminação, pelo que a guerra cultural estava desse ponto de vista ganha, embora o peso institucional dessas causas continuasse a ser forte, veja-se por exemplo o caso do Supremo Tribunal de Justiça americano, muitas vezes considerado o último bastião do conservadorismo.

O que se passou então nas décadas de 2000 e 2010 para fazer mudar de incidência dos “weirds” ou “fora do grupo”?

Segundo Smith, o principal fator explicativo da perda das guerras culturais que os meios conservadores enfrentaram deve-se à grande influência da educação polarizada e ao facto desses valores terem sido assumidos pela elite mais educada. O que se passou então foi a passagem do “weirdismo” para a parte política, designadamente o populismo à Trump e ao jeito do Make America Great Again (MAGA). A luta gigantesca que os movimentos populistas moveram às elites educadas, entendidas como não compreendendo os problemas e os anseios do povo mais profundo, está na génese dessa transferência. É essa transferência que Kamala Harris e a sua equipa tão bem têm desenvolvido, acusando Trump e J.D. Vance de serem hoje os verdadeiros “weird”. Este movimento trouxe para a política um clima de violência verbal e não só que o coloca fora do grupo dos que estão exaustos e cansados da virulência que a luta política alcançou. Os Democratas de Harris recuoeraram a palavra para mostrar que Trump e Vance estão do lado dos que na década de 2010 transformaram a política num caos e algo de profunda instabilidade. A dependência de Trump e Vance face aos meios de comunicação que tendem a propagar e a multiplicar tudo o que é considerado weird colocou-os dependentes de uma armadilha. A verdade é que numa recente sondagem 65% dos americanos considera-se exausto coma política e 55% zangados por causa da mesma. 

Tudo isto sugere uma hipótese favorável para Kamala Harris: estarão os Americanos à espera de alguém que devolva a estabilidade e a normalidade à política como Carter e sobretudo Reagan o fizeram, depois de Nixon ter abdicado? Será isso que explica o aparente êxito com que a equipa de Kamala recuperou a palavra e o desassossego que a mesma tem provocado nas hostes Republicanas?

Cá por mim, estamos em tempo de agarrar-nos a qualquer coisa que nos devolva a esperança e nos ajude a esperar por novembro com mais confiança.

 

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