segunda-feira, 16 de setembro de 2024

SIM, NÃO, ANTES PELO CONTRÁRIO...

Já não se consegue suportar o pingue-pongue diário entre o Governo e o principal partido da Oposição sobre a votação do Orçamento de Estado para 2025 (acima, alguns títulos só do mês corrente). Sobretudo porque a comunicação social alimenta vorazmente a especulação e a ideia de que o tema releva e é determinantemente polémico. A chinfrineira é permanente e, pior do que isso, a desordem impera nos discursos e nas análises (imbuídas de doses impensáveis de inventividade), que se estendem de zero a infinito em variações recorrentes. Escusado será sublinhar quanto esta bagunça não contribui para o esclarecimento dos cidadãos e prejudica o sistema democrático, mas somos forçados a conviver com isto e assim estamos na apagada e vil tristeza dessa verdadeira “dança macabra”.

 

A ver se nos entendemos: primeiro, recordar que tudo isto nasceu no quadro de uma triangulação absolutamente lamentável (Costa-PGR-Marcelo); depois, sublinhar que as eleições antecipadas forneceram os ingredientes de instabilidade que teriam sido evitados se tivesse havido responsabilidade; por fim, explicitar quanto esta ainda curta legislatura segue caminhos ínvios e indesejáveis, qualquer que seja o protagonista em apreciação. Mais em concreto: vivemos uma situação política do tipo de “nem o pai morre nem a gente almoça” e tal assim é porque Montenegro ascendeu a um lugar que nenhum dos seus sonhos mais cor-de-rosa anteciparia e assim faz/fará whatever it takes para o preservar/consolidar, assim como porque Pedro Nuno Santos ainda não decidiu objetivamente se quer mesmo tentar ser primeiro-ministro ou se prefere os jogos florais de grupo a que se tem vindo a dedicar.

 

Passo a tentar explicar-me ainda melhor, procurando ser liminarmente cristalino: é certo que o OE é um documento essencial de política económica e que, em condições normais, a sua aprovação deveria ser considerada importante; como aliás sugere a recente “Confissão” de Marçal Grilo nas páginas do “Público”, onde apela a que o PS deixe os seus interesses partidários imediatos e aprove o OE – “não obterá nada em termos políticos”, “também nada terá a perder” e “ganha seguramente a credibilidade e o respeito que os portugueses mais moderados e sensatos estão desejosos de ver”. Mas a questão é que não vivemos em condições normais, já que o que temos é o império de uma artificialidade enganosa e de um chico-espertismo inconsequente em sobreposição aos reais valores.


(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt)
 

Daí o meu vaticínio: por um lado, Montenegro vai prosseguir até ao fim a sua tática de ganhar pontos junto dos eleitores, sabendo que o pior que lhe pode acontecer estará entre ficar como está ou reforçar em eleições a sua posição; por outro lado, Pedro Nuno só poderá optar por votar contra o OE, sem o que quase certamente perderá as réstias de hipóteses, partidárias e nacionais, que ainda tem de chegar ao poder. Neste quadro, o fiel da balança acabará por ser Ventura e o seu “Chega” (atualmente em manifesta e até compreensível posição de bluff), sobretudo na medida em que não lhes será admissível que um novo ato eleitoral os conduza ao forte risco de perda de muitos dos 50 deputados que detêm no Parlamento, os quais lhes asseguram um espaço de visibilidade e consolidação preciso para os seus intentos. Ou seja: se a lógica não for uma batata, o Governo acabará por contar com o voto da extrema-direita (pagando algum tipo relativamente irrelevante de contrapartida) e o PS irá manter viva a chama pouco viva da liderança de Pedro Nuno; se a lógica for uma batata, o PS acabará por ceder à chantagem do Governo, levando a que Pedro Nuno dê início ao seu trajeto final e a que Ventura mantenha melhor a sua face e, consequentemente, o combate pelas suas ambições; se a lógica for qualquer coisa mais ou menos indefinível, os dois maiores partidos da Oposição ensaiarão uma jogada de póquer que acabe por levar o País a eleições antecipadas (contra todos os esforços de Marcelo), ficando um e o outro nas mãos de Deus no tocante às suas reais possibilidades de delas não saírem prejudicados em acréscimo – sendo que um dos encantos da política também está na dose de incerteza e imprevisibilidade que frequentemente comporta.

domingo, 15 de setembro de 2024

DENSIDADE VERSUS LIGEIREZA

 

(O regresso da canícula e com ela de novo o espectro dos incêndios a perturbar a vida de muitos portugueses, de norte a sul, o tempo convida mais a uma bebida fresca onde quer que ela possa ser tomada do que propriamente a um grande esforço reflexivo. Aliás, não foi fácil encontrar matéria para este post de início de noite, na qual o céu sobre o mar antecipa a continuidade da canícula, diria fora do tempo, mas na verdade o que é isso hoje de fora do tempo. Encontro o tema desejado no confronto densidade versus ligeireza, associando à primeira a excelente entrevista de uma das personagens mais fascinantes de abril de 74 em Portugal, o advogado Vasco Vieira de Almeida e identificando a segunda com as peripécias comunicacionais de Nuno Melo. A entrevista de Vasco Vieira de Almeida é um documento precioso para compreender o contexto do 25 de abril de 1974 e da governação que foi possível realizar nos primeiros anos da democracia até à estabilização do quadro constitucional. Quanto ao Ministro, que é talvez o elemento do governo de Montenegro que se pode reivindicar da sorte pura e simples para justificar até onde chegou, a sua historieta sobre Olivença é brilhante de génio chocho e no meio dessa historieta digna de folhetim não hesita a respeito do outro folhetim do Orçamento 2025 em apelar ao bom senso e afirmar que todos têm de ceder. Não poderia de modo algum desperdiçar este confronto-evidência entre a importância das palavras densas e a ligeireza dos que não conseguem esconder as benesses da sorte grande que lhe calhou por acabar na governação.)

A entrevista de Vasco Vieira de Almeida é daqueles documentos sem os quais a nossa interpretação do 25 de abril e dos anos da sua afirmação pela governação democrática ficaria truncada, fortemente limitada nas suas dimensões e evidências. Filho de um oposicionista ao antigo regime, com atividade política desenvolvida muito cedo, VVA tem um contexto de vida que lhe proporciona condições ímpares de vivência com os militares revolucionários (particularmente com Melo Antunes e Vítor Alves), relações próximas com a estrutura do nosso capital financeiro de então. Homem de uma cultura ampla e sólida, acabou por ter um conhecimento de perto da relação do 25 de abril com as ex-colónias, particularmente Angola, onde foi Ministro da Economia do Governo de Transição de Angola.

É particularmente relevante a sua relação com os militares e há um parágrafo na entrevista que explica melhor do que outra dimensão qualquer essa relação: “Eu identificava-me sobretudo com a ala moderada dos militares. Porquê? Por várias razões: eram pessoas sem ambição política, estavam ali por dever de interesse nacional. E devo dizer hoje que os militares foram e são subestimados”.

Da profundidade dos seus 93 anos, percebe-se lendo a entrevista a densidade de alguém que passou pela nossa experiência democrática com um elevado sentido de independência, aliás visível nas longas conversas que tive com o meu falecido Amigo Nuno Guedes de Oliveira, que conhecia com grande proximidade VVA por relações familiares e pelo qual sentia uma enorme admiração, sempre presente nessas conversas de escritório que recordo com saudade.

Não sei se depois de festejarmos os 50 anos da democracia de Abril, iremos ter personagens com esta densidade de experiência para que o país recorde o pós 50 anos.

Infelizmente, predomina a ligeireza da leviandade e como o Ministro Nuno Melo representa tão bem esse modelo!

 

sábado, 14 de setembro de 2024

VIEIRA EM FORA DE JOGO

 
(Henrique Monteiro, http://henricartoon.blogs.sapo.pt) 

A entrevista de Luís Filipe Vieira à CMTV foi o prato forte noticioso de ontem nas televisões nacionais. E foi pungente ver a indignação e a tristeza estampadas no rosto da imensa maioria dos comentadores, os mesmos cuja semana foi passada a apreciar cada movimento de Bruno Lage e a especular esmiuçadamente sobre as suas possíveis opções para o jogo com o Santa Clara; sempre com uma esperança rasgada na qualidade do recente reforço turco (após o hat-trick que fez ao serviço da sua seleção), o qual já relegou o ex-ídolo grego Pavlidis para segundo plano.


Voltando à entrevista: um longo momento de puro mau gosto, tradutor de um modo de estar que o futebol começa a não tolerar e cheio da arrogância própria de alguém que ainda se acha dono da bola e não entendeu o quadro em que se encontra nem a leitura que dele fazem os seus correligionários benfiquistas; isto sem prejuízo da falta de qualidade que Rui Costa tem evidenciado a todos os níveis e da quase certeza que podemos ter de que o Benfica vai passar por uma crise interna de alguma gravidade, só adiável pelo milagre de bons resultados desportivos que ajudem a ir disfarçando (até quando?) as diversas distorções que abundam para os lados da Luz.


sexta-feira, 13 de setembro de 2024

TUDO EM ABERTO, COMO É POSSÍVEL?

O debate presidencial já lá vai e dele se começam a retirar algumas consequências (ou falta delas). No caso, as sondagens nacionais continuam a dar a vitória a Kamala por uma diferença de 1,5 pontos percentuais (o que os especialistas consideram pouco para lhe assegurar o triunfo), enquanto as sondagens por estados (algumas ainda não traduzindo a reação àquela madrugada) apontam agora para três swing states como decisivos pela completa igualdade de perspetivas para os dois candidatos que evidenciam: Pensilvânia, Nevada e Carolina do Norte, no mapa acima a cinzento como toss ups e, portanto, portadores de 41 votos que desempatarão a contenda. Tudo muito baralhado ainda, pois.


(cartoons de Emilio Giannelli, http://www.corriere.it, Jeff Danziger, http://www.nytimes.comElla Baron, https://www.theguardian.com e Fiona Katauskas, https://www.theguardian.com)

 

Considerando as prestações a que assistimos, o que persiste em não me sair da cabeça é a existência de uma milhões largos de cidadãos americanos (representados a vermelho no mapa acima) que não compreendem minimamente o que está em jogo a 5 de novembro. Estou totalmente com o editor do último número da “Foreign Policy” (Michael Hirsh) quando escreveu: “Tenho uma confissão a fazer. Tenho um sentimento de paralisia nestas semanas que vão conduzir à eleição presidencial americana. Seja o destino da Ucrânia, a paz no Médio Oriente, a concorrência com a China ou a mais lata questão do papel da América no mundo, demasiado depende de quem será o próximo ocupante da Casa Branca. Uma presidência de Donald Trump seria muito diferente de uma de Kamala Harris e as sondagens continuam a mostrar que os americanos estão amargamente divididos sobre como escolher entre eles. Protagonistas chave nas crises globais, do presidente russo Vladimir Putin ao primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu, parecem como se estivessem à espera para ver quem ganha antes de fazerem o próximo grande movimento. Talvez seja por isso que é tão difícil lançarmo-nos para lá de 5 de novembro e imaginarmos como pode desenrolar-se uma variedade de conflitos e problemas.”

PARADOXOS EUROPEUS

 

(Fazendo jus a uma notoriedade que vem de longe e que sinceramente tenho dificuldade em explicar, tamanha é a intensidade com que se manifesta, seja em Itália, seja na Europa e até nos EUA, Mario Draghi regressa ao centro das atenções mediáticas com a apresentação de mais um relatório sobre as delicadas questões da inovação e da competitividade na União Europeia. Se quisermos ser rigorosos, não será por falta de documentos desta natureza que a consistência europeia não avança. Tenho na memória vários documentos com esta expressão que, precisamente, se perderam na memória das pessoas e das instituições. Este último relatório suscitou-me uma reflexão de natureza diversa e daí a referência aos paradoxos europeus. O problema está em que, regra geral, este tipo de relatórios parte de diagnósticos rigorosos e bem documentados. Ora, o que ressalta desses diagnósticos em matéria de situação europeia comparativa é de deprimir o europeísta mais afoito, tamanho é o gap que separa a Europa dos blocos políticos e económicos que comandam a dinâmica mundial. Por isso, arrisco uma hipótese de avaliação, estes relatórios acabam por produzir o efeito contrário, levam á depressão e não ao entusiasmo na viragem. Isto não significa, obviamente, que não se trate de documentos de grande valia reflexiva, mas o problema é que os gaps de inovação e competitividade talvez resultem de outras questões estruturais, entre as quais o modelo institucional da governação europeia continua a ser a pedra no sapato que condiciona tudo o resto. Duvido sinceramente que haja capacidade de concertação política para acolher com abertura a proposta de Draghi para mais um “big push” em matéria de investimento financiado por dívida conjunta. Ainda estamos a braços com as dificuldades de dar sequência ao Next Generation EU e Draghi convida-nos para mais uma viagem. Um europeísta convicto e afoito interroga-se …)

Existe como sabemos na Europa uma grande animosidade para com os grandes expoentes do “high-tech global” e também é conhecido que a prática efetiva desses conglomerados é pouco recomendável. A Comissão Europeia tem-se esforçado por manter na linha esses potentados e são frequentes a coimas astronómicas dirimidas em longos processos judiciais, tais como por exemplo o que foi dirigido à APPLE. Todavia, paradoxalmente, os relatórios como o que Draghi acaba de apresenta começam quase sempre por acusar o vazio europeu nessa matéria: “A Europa está presa numa estrutura industrial estática com poucas empresas a crescer em disrupção contra as indústrias existentes ou para gerar novos motores de crescimento. De facto, Enão há na Europa nenhuma empresas com uma capitalização de mercado acima dos 100 milhares de milhões de euros que tenha surgido nos últimos cinco anos, enquanto todas as seis empresas americanas com um valor acima de um milhão de milhão de euros foram criadas nesse período”.

O relatório Draghi não foge a esse choradinho e refere mesmo que é conhecida a tendência para os start-up’s europeus escalarem no mercado americano em função da maior dinâmica do capital de risco americano, não escapando ao já batido lamento de que as práticas regulatórias europeias acabam por funcionar como um motivo para essa deserção. Que a Europa não tem uma cultura de capital de risco como a americana já o sabemos há muito, mas a questão das práticas regulatórias exigiria uma discussão mais profunda.

Os outros dois domínios em que o relatório Draghi se abalança com diagnósticos e propostas é o do desenvolvimento de um elo virtuoso entre descarbonização, inovação e competitividade e o do reforço das indústrias de defesa e segurança e redução da vulnerabilidade europeia nessa matéria, com a Alemanha à cabeça dessa dependência.

O relatório exigirá da minha parte uma leitura mais aprofundada para nele captar mais matéria de reflexão. Mas o que me parece é que discutir estas matérias sem em paralelo avançar na discussão da governação europeia, com as questões da situação política atual em França e na Alemanha no centro dessa reflexão, conduzirá este relatório aos rumos que outros traçaram no passado. Ou seja, existirá a costumeira dificuldade de traduzir a ambição das suas propostas em políticas europeias consequentes.

A ideia do “big push” de investimento nestas matérias é atrativa, mas não existe sequer uma avaliação do PRR europeu. E reunir condições políticas para o financiamento desse “big push” ainda me parece mais questionável.