segunda-feira, 16 de setembro de 2024

FRAGILIDADE E VULNERABILIDADE ESTRUTURAIS

 

                                                            (Jornal de Notícias)

(As televisões são de uma crueldade infinita, quase mórbida. Quando na ânsia de explorar um novo ponto de fogo ou um qualquer reacendimento inesperado as imagens mostram o desespero das populações, é um outro País, menos fotogénico e turístico, que as imagens nos trazem. Não estamos a falar do interior profundo, o território que está na mente das pessoas quando nos bombardeiam com a questão da baixa densidade. Estamos sim a falar de fogos na periferia metropolitana e no que eu costumo designar de “periferia próxima”. Territórios que distam uma dezena ou trintena de quilómetros do litoral denso, ocupado e desordenado. Territórios quase sempre não diferenciados para os que os vêm de fora e não têm com eles a empatia e a relação de pertença que as populações em desespero perante as câmaras regra geral evidenciam. Mas sem dúvida territórios frágeis e vulneráveis, essencialmente devido a ordenamento inventivo, proximidade cúmplice com a floresta em parte não tratada, desleixo de limpeza e arrumação depois que os emigrantes partem e as festas de verão já não acontecem. É pena que naturalmente face à tragédia das imagens e devido à empatia com o desespero de populações impotentes, clamando por um camião-cisterna à mão e por um atendimento de prioridade quando no clímax de uma quantidade enorme de pontos de fogo os critérios operacionais se orientam por outras prioridades, a País não veja este outro País que as imagens cruelmente nos mostram. Um País de uma profunda fragilidade e não menos relevante vulnerabilidade, bem aqui ao pé do litoral que costuma ser apontado como o símbolo da densidade e da ocupação).

Há alguns anos, quando assessorei a CCDR Centro, com quem gosto imenso de trabalhar, na preparação da sua Estratégia Regional 2030, lancei com algum êxito para a discussão a ideia de que era fundamental organizar a resiliência dos territórios menos densos, combater a sua vulnerabilidade, organizando serviços de aldeia e a organização espontânea das populações. Estava então claramente influenciado pelos acontecimentos de Pedrogão e afins e sobretudo pelas ideias de uma mente brilhante em matéria de fogos rurais e florestais, o Professor Xavier Viegas.

A ideia fez o seu percurso na programação regional, embora não tivesse sido fácil reconvertê-la em instrumentos credíveis de planeamento, sobretudo porque a programação europeia é cada vez um conjunto de gavetas rígidas e pouco adaptáveis à inovação das ideias. E acabou por convergir com uma outra ideia do Acordo de Parceria para o horizonte 2030 que definiu o declínio demográfico como desafio estrutural a vencer pela programação. O síndrome das gavetas da programação tem transformado a resposta da programação europeia ao desafio demográfico num flop dos valentes e a ideia da resiliência apanhou claramente por tabela.

Mas recordo-me perfeitamente que, na consulta local generalizada que a Estratégia Regional Centro 2030 suscitou, os autarcas de municípios do litoral com territórios de periferia próxima, como os descrevo nesta crónica, reivindicaram com veemência a necessidade dos seus territórios serem também cobertos por instrumentos de política de promoção da resiliência. Em meu entender, estavam com carradas de razão, pois os seus territórios partilham situações de fragilidade e vulnerabilidade estruturais similares e tão violentas como o interior mais profundo.

É de facto um País talvez esquecido que estas imagens nos mostram, com anos e anos de urbanismo e ordenamento controverso, fortemente potenciado pela dispersão da propriedade, ainda deficientemente infraestruturado, que é atingido inclementemente por acontecimentos desta natureza – a simultaneidade de um conjunto impressionante de focos de incêndio, largamente potenciado por acontecimentos climáticos anormais para as tendências do passado, mas muito provavelmente antecipando “novos normais”.

Costumo macabramente relembrar que a probabilidade acidental de morte é elevada nesta periferia próxima quando fenómenos desta natureza acontecem e a hierarquia operacional é cruel em ter de deixar para trás, pelo menos durante algumas horas, alguns lugares em termos de prioridades de combate.

Por isso, relembro sempre que qualquer discurso mais entusiasta ou romântico do regresso e povoamento do interior ou desta periferia mais próxima não pode ignorar a perceção que estes acontecimentos geram nas pessoas sobre a probabilidade de morte em territórios indefesos, frágeis e vulneráveis. E esse outro País está ali bem presente nas imagens cruéis que as televisões nos transmitem. Mas muita gente acaba por não o ver, esmagado pela força do fogo e do desespero das pessoas.

 

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