terça-feira, 10 de setembro de 2024

EVASÕES

 

(Escrevo no Alfa de regresso ao Porto depois de mais uma reunião de lançamento de um trabalho de avaliação, neste caso da operacionalização do Programa Pessoas 2030, também designado de Demografia, Qualificação e Inclusão. Escrevo emparedado entre a janela e uma gestora, provavelmente responsável por um qualquer departamento de vendas, sei lá de que empresa. A senhora manipula com destreza o EXCEL enquanto fala sem parar ao telemóvel e, por isso, me ocorreu o tema evasões. De facto, apetecia evadir-me para outro lugar mais repousado, mas quando se troca bilhetes não pode ser-se muito exigente e aceita-se o lugar disponível. Vou tentar abstrair, espero que o telefone se cale já que a manipulação do EXCEL não é pelo menos ruidosa. Daria algum dinheiro para saber o que é que a gestora frenética estará a pensar (que raio de texto estará este marmelo a escrever?). Regressemos ao sério e justifiquemos o título evasões. Por estes dias é impossível fugir ao folhetim das evasões de Vale de Judeus. O tema interessa-me pelo caricato trágico-cómico que todo o processo revela, nu e cru nas suas mais ínfimas expressões. A sociedade portuguesa é pródiga neste tipo de evidências algo macabras. Mas onde reside de facto o macabro da situação? Não é nos rostos ameaçadores dos meliantes evadidos, embora alguns sejam de manual. O macabro está no que a situação revela de insuficiências ocultas, melhor dizendo de insuficiências conhecidas, mas às quais tendemos a voltar as costas até que algo de excêntrico irrompe e rompe com o nosso alheamento. São essas insuficiências que me atraem e não é por morbidez gratuita.)

À medida que vão sendo conhecidos os pormenores mais sórdidos de toda a trama, aparente facilidade com que as ajudas militarizadas exteriores assentaram arraiais nas proximidades, também aparente facilidade com que foram vencidos os obstáculos físicos à fuga, período de tempo ocorrido entre a fuga propriamente dita e o alerta interno, a eternidade que demorou até que a GNR e a Polícia Judiciária fossem avisados do sucedido e evidências de falhas físicas manifestas no sistema de segurança da prisão, o chorrilho de situações é imenso, variado e tão gritante que apetece dizer que andava muita gente distraída ou a assobiar para o lado.

O que está oculto por detrás de toda esta tralha de insuficiências são dois tipos de coisas.

O primeiro tem sido mais badalado e diz respeito ao estado lastimoso de alguns serviços públicos, neste caso dos serviços prisionais. Dos aspetos mais lastimosos de condições de vida para os reclusos várias entidades cívicas têm levantado a voz. Mas esta situação é fruto das condições devastadoras a que os serviços públicos foram submetidos pelo processo de austeridade vulgo TROIKA e da incapacidade dos governos de António Costa para remediar a situação, focados que estiveram na recuperação de rendimentos e depois no equilíbrio das contas públicas. Parece evidente que o governo de Montenegro mediu mal o problema que iria ter entre mãos, criando a cama para ser parte do problema, não sendo capaz de mitigar parte da deterioração atrás referida. Não é sobre esse tipo de situação que pretendo refletir, até porque o meu conhecimento das condições concretas do sistema prisional é reduzidíssimo e dependente do que os jornais têm investigado.

O segundo tipo de insuficiências é mais interessante pois não é específico do sistema prisional, sendo antes uma característica marcadamente estrutural da nossa administração pública.

Quando o novelo destes casos começa a ser desfiado vemos uma administração organizada em silos, revelando uma incapacidade congénita de articulação e de coordenação da informação. Nada está protocolado para que a informação flua normalmente. Assim aconteceu no caso rocambolesco de Vale de Judeus. As enormidades do tempo que decorreu até que as entidades certas fossem devidamente avisadas ou fazem parte da tramoia (veremos o que dá a investigação) ou revela um claro problema organizacional e de comunicação/informação. Não é um problema específico do sistema prisional, é antes uma característica transversal de como a administração pública está organizada. O problema está lá, conhecemo-lo até com bastante pormenor, mas só quando o rocambolesco se manifesta é que parece que damos conta da insuficiência. De reforma do Estado temos tido apenas projetos e textos ligeirinhos do tipo daquele a que Paulo Portas designou no passado de reforma do Estado.

E assim definha a administração de serviço público.

 

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