(Financial Times)
(Não há economista que se preze que se canse de apontar a economia alemã como a economia motora da União Europeia, especialmente pela relação virtuosa entre dimensão e tecnologia. É verdade que a França não pode ser menosprezada nessa perspetiva, mas a metáfora do motor alemão da Europa está mais disseminada do que as metáforas possíveis em torno do eixo franco-alemão. Não vou discutir neste post as agruras económicas e tecnológicas da economia alemã, ainda em claríssimo e esforçado ajustamento seja ao novo cenário energético mundial, seja à busca de um novo posicionamento relativamente à China. Relativamente a esta última são cada vez mais claros os sinais de que ela caminha para uma autonomia tecnológica apreciável. O Financial Times volta ao tema estudando em particular o caso dos computadores Huawei. O meu ponto é outro e interessa-se mais pela ideia de motor político. Scholz é muito provavelmente um bom homem, mas a verdade é que desde os tempos de Merkel a ideia da Alemanha como motor político da União tem perdido progressivamente fulgor, talvez devido não a uma questão de personalidades, mas antes devido a uma significativa alteração do contexto político que a Senhora Merkel deixou para trás. Em tempos em que o sobressalto de uma possível vitória de Trump nos deixa angustiados e perplexos com o que isso pode significar para as relações internacionais, talvez não estejamos a prestar a devida atenção às diversas engrenagens que ensombram a ideia da Alemanha como motor político da Europa. Talvez seja Zelensky pela força das circunstâncias a perceber melhor do que ninguém a relevância da situação e do risco que lhe anda associado. Aliás, o líder ucraniano sentiu na pele na suja visita ao Parlamento alemão o que significa o boicote político da AfD à sua presença em solo alemão.)
O esfrangalhamento político que a ascensão da AfD significa e a também relevante ascensão política do partido populista de esquerda batizado com o nome da sua estrela, Aliança Sahra Wagenknecht (BSW), transportam para o dia a dia da política alemã um abalo telúrico com algum significado. Não nos admiremos que os Verdes (em extinção temporária, pelo menos nas três eleições em que a AfD emergiu como primeira ou segunda força política) e o SPD comecem a revelar aquele efeito mimético terrível de se aproximarem das propostas da extrema-direita e da esquerda populista. Mas, embora este fenómeno me aterrorize, a tentação da cópia é fatal, diria que esse não será o mal menor provocado pelo mencionado abalo telúrico. O mais grave é a incapacidade que a nova situação traz ao governo alemão e à sua presença inspiradora na União Europeia. Algo em rompimento absoluto não poderá ser motor político de nada e muito menos de uma União Europeia que, mais do que nunca, sob pena de assumir de vez a sua irrelevância política precisaria de VOZ FIRME E COERENTE, até para se preparar para um cenário de vitória de Trump.
A posição de apoio à Ucrânia é uma das tais matérias em que a situação política interna alemã acabará inevitavelmente por condicionar a posição europeia. Daí ter referido anteriormente que Zelensky é provavelmente o líder político que compreendeu melhor esta situação, por mais que a também alemã Ursula von der Leyen faça piruetas para transmitir outra ideia.
O perspicaz cronista internacional do Financial Times Gideon Rachman explora atentamente os resultados nas eleições regionais da Turíngia, Saxónia e Brandenburgo na Alemanha para demonstrar que, perante a necessidade de apoio firme à Ucrânia, o governo alemão está obviamente em dificuldades com mais de um terço do eleitorado seduzido pelos apelos à direita extrema e da esquerda populista.
Penso a propósito de tudo isto que uma vez mais estará ao rubro o velho debate que a União Europeia tem vindo a procurar evitar, umas vezes mais diretamente, outras em modo mais disfarçado. Esse velho debate traduz-se no choque cada vez mais violento entre duas posições: a que defende que lideranças fortes e com visão de futuro podem comandar o projeto europeu ainda que à revelia dos parlamentos nacionais e a que, pelo contrário, sustenta que a construção europeia tem de ser concretizada em estreita interação com a política nacional. Diga-se a este respeito que, nos últimos tempos, a primeira posição falhou, porque de lideranças fortes, carismáticas e visionárias nem vê-las, esgotaram-se com a memória dos que ousaram no passado evoluir por esses caminhos. No contexto de hoje, é a situação política de alguns países que impõe o primado da segunda tese. E nada melhor do que a Alemanha para o provar. Scholz é um líder acossado que nem sequer a magríssima vitória em Brandenburgo conseguiu disfarçar. Aquela falta de à vontade não é apenas um traço indelével de personalidade. É o reflexo dos condicionantes que pesam sobre o governo alemão. Estou com curiosidade para perceber o que é que António Costa irá fazer como Presidente do Conselho Europeu. Haverá quem diga que Costa estará perante uma situação típica de passo maior do que a perna. Veremos como interpreta a situação, mas arrisco o vaticínio de que entraremos num novo ciclo de evolução europeia (se acaso poderá ser designada de evolução) marcado pelo primado do que os eleitorados nacionais permitirem fazer. No que respeita à outra tese, acho que o programa seguirá dentro de momentos, largos no tempo, direi eu. Sem as tais personalidades fortes, carismáticas e visionárias, seriam necessários passos em matéria de construção de um eleitorado europeu, para os quais avanços em matéria de listas europeias seriam necessários. Mas sem chama subjacente a essas listas a sua rejeição eleitoral será mais do que provável. O imenso e desafiante trabalho político que isso exigiria não nasce do vazio.
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