quinta-feira, 5 de setembro de 2024

ALGUÉM A PENSAR A UNIÃO

 


(No meu título de hoje talvez acrescentasse um finalmente e explico porquê. O vazio de pensamento que existe na comunicação social nacional, na academia, sim também nela e por arrastamento entre as forças políticas no país sobre o futuro da União Europeia gera um silêncio ensurdecedor. Tanto mais estranho quanto não foi sempre assim. No plano regional, as CCDR já foram espaço de reflexão séria sobre as questões europeias. E no plano nacional, quer por via de pensamento vindo da diplomacia nacional, quer por via das agências que se ocupam dos Fundos Estruturais Europeus e de Investimento, a questão comunitária já esteve mais presente. Não consigo entender este apagamento temático, tudo se passa como se estivéssemos reféns da nossa dependência dos Fundos Europeus, o que é manifestamente preocupante e se reflete na pobreza do enquadramento reflexivo que acompanha no país as eleições europeias. As últimas limitaram-se a confirmar a regra. Neste estado de coisas, quando os jornais nos trazem algum exemplo de reflexão fundamentada, há que festejar a exceção, mesmo que desconfiemos que será muito provavelmente um caso isolado e que devemos esperar sentados até que surja outro contributo. Ou seja, contributos isolados não logram produzir um ambiente de debate e esse é o aspeto mais empobrecedor do vazio de pensamento à nossa volta.)

Este post é suscitado pelo artigo do Professor António Covas, publicado hoje no Público, com o sugestivo título de “Plano Delors 2030, agenda dos comuns e governo de missão”.

O António Covas, com quem tenho privado em algumas conferência e encontros sobre as questões regionais em Portugal, é uma das vozes mais frescas e inovadoras sobre as questões territoriais e regionais em Portugal. É-o sobretudo pela sua capacidade de combinar a abordagem do território com uma interpretação sempre atualizada do que a civilização digital significa. O avanço reflexivo de algumas das suas propostas é, por vezes, erradamente entendido por muita gente como sinónimo de abstração e teorização excessivas, o que é uma pena, pois o alcance da reflexão do António Covas é significativamente inovador e traz-nos leituras muito inspiradoras sobre o desenvolvimento territorial e a possibilidade de o potenciar através de políticas consequentes.

A abordagem que consta do artigo hoje publicado está suportada por uma sólida base teórica: a referência provocatória a um Plano Delors 2030 significa um alerta para a necessidade de geração de referenciais mobilizadores como o foram no passado os documentos com a chancela Delors; e a referência a uma agenda dos comuns e a governos de missão está solidamente influenciada pelos trabalhos da Nobel Elinor Ostrom e de Mancur Olson, ambos em torno do conceito de bem comum e ação coletiva, e pelos contributos mais recentes de Mariana Mazuccato sobre a “mission-oriented economy”.

É particularmente feliz a referência que António Covas realiza sobre o que está subjacente ao lento avanço da governação europeia: “a crença na doutrina de soft policy para fazer avançar o processo de integração faz parte da via mais liberal para orientar a polity e a policy europeia, ou seja, acredita-se que uma adequada combinação de mercados e instituições é a medida certa para o processo de integração económica e, logo, também, política”.

Se em tempos “normais” esta soft policy é ela própria exasperantemente lenta na geração de efeitos palpáveis, em termos de polarização e fragmentação política ela, pura e simplesmente, deixa de funcionar. Acresce que as perspetivas de alargamento e a erosão do capital social de confiança no projeto europeu adensam ainda mais a negritude do momento.

Apoiando-se na ideia de Grande Transformação de Karl Polanyi e na necessidade de uma espécie de Plano Marshall de geração endógena em linha com a inspiração de Delors, o artigo de Covas vai buscar à Mission Economy de Mazuccato a sua principal inspiração para propor um conjunto de governos de missão – pacto ecológico; transição digital e inteligência artificial; indústrias de defesa e segurança; oceanos, ciências do mar e economia azul; migrações e fronteira exterior da União; Europa das Cidades e das Regiões.

Sabendo nós que Mariana Mazuccato é bastante próxima da Comissão Europeia e que grande parte do pensamento da Mission Economy está publicada em documentos da própria Comissão, pode perguntar-se porquê os contributos da economista italiana não têm tido o impacto esperado?

Arriscar-me-ia a avançar com a ideia de que falta aos governos de missão de António Covas um outro e é nesse que está o nó górdio da questão europeia. Falta, embora possa parecer paradoxal, um governo de missão sobre a própria governança europeia. Ou seja, alguma reflexão para encontrar uma alternativa à tal “soft policy” sem deixar de manter o elo de ligação às governações e aos parlamentos nacionais.

Quantos Delors precisaremos para o conseguir?

 

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