domingo, 1 de setembro de 2024

UM PAÍS DENTRO DE OUTRO PAÍS?

 

                                                            (Jornal Público)

                                                                               (New York Times)


(Todos os maus sinais anunciados pelas sondagens se confirmaram hoje nas eleições regionais alemãs na Turíngia e na Saxónia, considerados estados em que a extrema-direita alemã AfD tem a sua máxima força. Primeira na Turíngia estima-se com uma votação em torno dos 30% e segunda na Saxónia logo atrás da CDU, com um ponto percentual menos, 31,8%. As votações alcançadas pelo SPD e pelos Verdes são irrisórias e em termos de novidade apenas há que registar a votação da Aliança Sahra Warengnecht (anti-imigração e contra a posição europeia a favor da Ucrânia), acima dos 10% nas duas regiões. Considerando que a Turíngia e a Saxónia são regiões baluartes da antiga Alemanha de Leste, apetece dizer que a Alemanha tem dentro de si um outro país, em que o racismo, a xenofobia e decididamente a revolta contra a Alemanha mais poderosa são validados pelas urnas com uma grande vantagem sobre as forças da coligação presidida por Scholtz e pelo SPD. Tudo isto se passa no seio do pressuposto motor da Europa, traçando uma trajetória política que mais tarde ou mais cedo se transmitirá à política alemã por mais declarações inflamadas contra a extrema-direita que possam ser produzidas. O mimetismo das posições anti-imigração e a velada admiração pela brutalidade de Putin acontecerão em meu entender com naturalidade, na sequência dos vãos propósitos de estancar o crescimento sustentado da extrema-direita alemã. E talvez agora comecemos a compreender melhor as hesitações de Merkel, afinal vinda de onde veio ninguém talvez melhor do que ela conhecia a sociedade latente na tal Alemanha que se pretendeu integrar no funcionamento do tal motor europeu.

Refletindo sobre tudo isto, concluo sem grandes dúvidas de que a transição do chamado leste europeu, comunista de raiz e sob o jugo soviético durante largo tempo, para uma economia liberal e de mercado é talvez um dos grandes flops da história contemporânea. O que se passa nas regiões da antiga Alemanha de Leste é à luz desse majestoso flop que deve ser compreendido. Isto apesar dos rios de dinheiro que os orçamentos europeu e de Berlim verteram sobre tais territórios, tentando proporcionar-lhes condições para apanhar o comboio do desenvolvimento e tirar partido das forças de mercado.

Parece poder concluir-se adicionalmente que a transição para a economia de mercado sem uma base de sociedade civil minimamente estruturada tende a dar para o torto. A formação dessa sociedade civil a partir do zero, já que o regime comunista bloqueava toda a génese possível dessas forças, equivale a uma transformação ciclópica, sobretudo a partir de um zero absoluto em termos de base e identidade cultural, em contraponto por exemplo com as sociedades checa e húngara em que a resistência tendeu a potenciar a formação dessas raízes, mesmo que perseguidas pelo regime soviético.

A nostalgia saudosista de grande parte da população para com o regime soviético explica hoje a não condenação de Putin. Emparedada por um lado pelo desvio económico de produtividade e remunerações face à Alemanha mais próspera e, por outro, pela queda do modelo soviético de referência que funcionava sempre como apoio de último reduto da Alemanha do outro lado do muro, não admira que uma grande parte da população seja presa fácil do discurso da AfD e da admiração por Putin. Não foi este afinal o único que criticou violentamente o erro do desmantelamento da União Soviética?

Poderá dizer-se que as linhas vermelhas colocadas pelos partidos democráticos alemães a uma possível governação da AfD reduzirão ao mínimo a possibilidade de poder efetivo por parte da organização. O mesmo não pode dizer-se sobre a Aliança Sahra Warengnecht que se integra no quadro constitucional. Mas em meu entender o problema não é esse. O problema mais grave está no mimetismo instintivo que as forças políticas alemãs irão prosseguir, cavalgando os mesmos temas da AfD. Assim, contemos com um endurecimento generalizado das posições anti-imigração e a Ucrânia que se cuide.

Tudo isto, repito, no coração do pressuposto motor da Europa. Se a governança europeia está ameaçada há muito, a evolução política na Alemanha determinará seguramente o agravamento do problema.

Por fim, concluo ainda que o estudo sobre o falhanço das transições das economias de leste para a economia de mercado não está concluído. Falta acrescentar-lhe um capítulo determinante – o flop da transição da Alemanha de Leste.

 

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