(Sou um admirador
confesso da literatura americana do século XX, com o universo das short stories
de Carver e de outros à cabeça, mas o primeiro contacto com a obra de Carson
McCullers foi amor à primeira vista, juntando-se a uma lista que já vai longa e aguça o apetite para outras
obras da autora…)
A literatura americana fascina-me e bem pena tenho do esforço por vezes
inglório de a tentar ler na língua original, coisa que por vezes uma boa tradução
é capaz de superar. Talvez este fascínio tenha começado pela obra de Raymond
Carver e com as suas desconcertantes histórias curtas, mas a verdade é que
tenho acumulado uma vasta lista de grandes impressões, de que destaco Cormac
McCarthy, Flannery O’Connor, J.D. Salinger, Katherine Ann Porter, obviamente Jack
Kerouac e mais recentemente Don de Lillo, mais lá atrás Faulkner. A Ficções da
Relógio de Água, mas também a D. Quixote, têm-se encarregado de alimentar a
lista.
Para mim o fascínio de que falava há pouco prende-se sobretudo com os
ambientes (e de pessoas) inusitados que se respiram nessa literatura, das selvas
urbanas mais densas, problemáticas ou sofisticadas como Nova Iorque às atmosferas
mais profundas de uma América perdida, que tive oportunidade de simplesmente contornar
e não penetrar, profunda, impossível de integrar no mais rudimentar roteiro turístico,
mesmo que informal. A Balada do Café Triste da escritora Carson McCullers, aguardava
pacientemente na estante por uma oportunidade, que surge normalmente em períodos
de férias. É uma obra pequena, setenta páginas, que só é possível ler de um só
fôlego, aproveitando o repouso de um alpendre em tarde de canícula.
Aparentemente localizada numa main
street típica do interior americano nas encostas da Géorgia do Norte, a
história do Café Triste é essencialmente o produto de uma interação que viria a
revelar-se primeiro redentora e depois trágica entre três personagens: Miss
Amelia Evans, uma mulher masculinizada, de grande força muscular e envergadura
que vive e dirige um pequeno negócio nessa rua, do tipo vende tudo, incluindo
mezinhas para qualquer maleita; Lymon Willis o anão que irrompe na história numa
tarde de agosto que só naqueles ambientes do interior americano tem o seu
significado profundo, identificando-se como primo afastado de Miss Amelia e Marvin
Macy, marido por 10 dias de Miss Amelia e que depois de uma longa passagem pela
prisão regressa ao povoado para incendiar a relação entre os três personagens. A
escrita de McCullers é prodigiosa na descrição deste ambiente e sobretudo na
transformação da loja de Miss Amelia num café que revolucionou a vida da
referida povoação, produto da chegada do anão e da sua influência na mudança de
comportamento da enigmática figura da sua proprietária. A tensão do regresso de
Macy ao povoado e a influência que provoca no anão Lymon e na sua relação com Miss
Amelia é de tal maneira envolvente e ofegante que só a explosão final do
afrontamento entre Miss Amelia e Macy, com o café transformado em recinto de
luta, nos pode acalmar. Nesse combate/luta prodigiosamente descrito por
McCullers, quando Miss Amelia está prestes a desferir o golpe final, com o pescoço
do adversário controlado, um fenómeno estranho e impensável acontece no ringue improvisado.
O anão Lymon num voo felino e improvável crava as suas unhas nas costas de Miss
Amelia e desequilibra o combate que se traduz na vitória de Macy e na humilhação
da proprietária do café.
O leitor nunca chega a saber as razões do casamento falhado de 10 dias de
Miss Amelia com Macy. A derrota na luta, inverte a história, o café desaparece,
Miss Amelia entaipa a própria loja e a Main Street regressa ao seu isolamento
profundo, com Macy e Lymon a deixarem na sua fuga restos de destruição gratuita.
O epílogo/epitáfio da Balada é um prodígio de escrita sensorial.
Com a devida vénia ao tradutor José Guardado Moreira (excelente tradução),
vale a pena citar:
“Os doze homens mortais
A estrada de Forks Falls fica a três milhas e é aí que trabalham os presos.
A estrada é de alcatrão e as autoridades municipais decidiram tapar os buracos
e alargá-los numa curva mais perigosa. O grupo é composto por doze homens,
todos vestidos com os fatos às riscas brancas e pretas, agrilhoados nos
tornozelos. Há um guarda, de olhos vermelhos semicerrados, por causa da luz
intensa. Os presos trabalham todo o dia; chegam ao nascer do sol amontoados no
carro celular e partem ao anoitecer. Durante o dia, ouve-se o ruído das
picaretas batendo no chão de argila, sente-se o sol forte e o intenso cheiro a
suor. Há música todos os dias. Começa, a medo, uma voz soturna, como que
fazendo uma pergunta. Passados uns momentos, outra voz, a que depressa se junta
o resto do grupo. As vozes são sombrias, apesar de a luz do Sol ser intensa, e
a música mistura, estranhamente, tristeza e alegria. O canto avoluma-se de tal
maneira que não parece vir do grupo de doze homens, mas brotar da própria terra
ou cair do céu. É uma música que dilata o coração de qujem a ouve e provoca
estremecimentos gelados de medo e êxtase. Depois, lentamente, o canto esmorece
até restar apenas uma voz isolada, em seguida um som rouco e respiração, o Sol
e o som das picaretas no silêncio.
E que espécie de grupo de grupo é este, capaz de criar música assim? Apenas
doze homens mortais, sete pretos e cinco brancos, rapazes da região. Apenas doze
homens mortais numa estrada.”
Em inglês para se perceber a excelência da tradução:
THE
TWELVE MORTAL MEN
The Forks Falls
highway is three
miles from the
town, and it
is here the
chain gang has been working. The road is of macadam, and the county
decided to patch up the rough places and
widen it at a
certain dangerous place. The gang is
made up of
twelve men, all wearing black and white striped prison suits, and
chained at the ankles. There is a guard, with a gun, his eyes drawn to red
slits by the glare. The gang works all the day long, arriving huddled in the
prison cart soon after daybreak, and being driven off again in the gray August
twilight. All day
there is the
sound of the picks striking
into the clay earth,
hard sunlight, the smell of sweat. And every day there is music. One dark voice
will start a phrase, half sung, and like a question. And after a moment another
voice will join in, soon the whole gang will be singing. The voices are dark in
the golden glare, the music intricately blended, both somber and joyful. The
music will swell until at last it seems that the sound does not come from the
twelve men on the gang, but from the earth itself, or the wide sky.
It is music
that causes the
heart to broaden
and the listener
to grow cold with ecstasy and fright. Then slowly the
music will sink down until at last there remains one lonely
voice, then a
great hoarse breath,
the sun, the sound of the
picks
in the silence.
And what
kind of gang is this that can make such music? Just twelve mortal men, seven of
them black and
five of them
white boys from
this county. Just twelve mortal men who are together.
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