(O imbróglio político
em torno da candidatura à Agência Europeia do Medicamento mostra aquilo que já
perdi a esperança de poder ser diferente, a incapacidade histórica do Partido
Socialista em construir uma abordagem ao desenvolvimento em que a descentralização
seja elemento intrínseco dessa mesma abordagem, não cedendo à primeira questão de Estado que
se perfile no horizonte …)
O Partido Socialista, ou pelo menos algumas das suas cabeças mais pensantes,
gosta de se apresentar como um partido municipalista e descentralizador, invocando
algumas das tradições do pretenso municipalismo português. Mas, em meu entender,
não é por esse caminho que se avalia a coerência descentralizadora de uma força
política. Aliás, a tradição jacobina do PS é bem forte e, por exemplo, a linha
de Mário Soares ia nesse sentido, louve-se a sua coerência ao longo de toda a
sua vida política, recordemo-nos da sua posição a propósito do referendo
(perdido) da regionalização. Uma tradição dessa natureza, embora não esgote as
diversas tendências que atravessam o partido, não se dissolve com facilidade. Impregna-se
e reproduz-se. O próprio municipalismo é para muitos no partido a oportunidade
de construir os seus próprios nichos de poder, sendo para mim claro que a
identificação de municipalismo com descentralização tem muito que se lhe diga e
não são seguramente sinónimos.
O apego à descentralização como forma incontornável de aprofundamento da
democracia acontece quando a descentralização e o território constituem elementos
intrínsecos do modelo de desenvolvimento que a formação política pretende
protagonizar, na relação irreversível de território simultaneamente como
sujeito e objeto. Ou seja, não há coerência quando se é pela coesão no plano
europeu e quando a nível nacional ela se relativiza em função das tais questões
de Estado e da por vezes vergonhosa interpretação do que é o interesse nacional.
A questão da candidatura à possível localização da Agência Europeia do
Medicamento resultante do BREXIT representa uma excelente oportunidade de medir
o pulso à consistência descentralizadora do governo. O governo sabe que a Norte,
centrado no Porto e em Braga, particularmente no Porto, emergiu nos últimos anos
uma massa crítica representativa de recursos humanos e relevantes competências
na área das ciências da vida e da saúde em geral, fortalecida com outras massas
críticas em domínios científicos como a engenharia biomédica, a nanotecnologia
e outras, formando um cluster potencial, aliás institucionalizado e com sede a
Norte – o Health Cluster. Isto não significa que as massas críticas em Lisboa
nestas áreas não sejam relevantes e não devam ser tidas em conta. Aliás, projetos
como o da Fundação Champalimaud, que não se pode queixar de falta de apoio público,
sempre foram vistos por vozes mais críticas como a minha, não está em causa a
sua valia intrínseca, como uma tentativa de impor algum respeito à relevância
dos recursos emergentes a Norte. Mas o que eu quero dizer é que no caso desta
Agência Europeia há razões suficientemente objetivas para que a candidatura à
sua localização pudesse ser pensada como um instrumento de coesão e de valorização
equilibrada dos recursos do país. As razões atabalhoadamente reunidas por António
Costa para tentar acalmar os “índios” cá de cima invocam recursos que se
concentraram na capital por meras questões administrativas e não pela evolução normas
das massas críticas de recursos científicos e tecnológicos. Ou seja, é nestas pretensas
questões de Estado que se mede o pulso efetivo aos impulsos descentralizadores
e a força da tradição e do tem de ser é muita.
Talvez se tenha passado de um estádio em que lá para norte há uns índios
que têm de ser interpretados e há sempre na corte do governo de Lisboa
candidatos a traduzir comportamentos tão imprevisíveis. Há pelo menos alguns “índios”
inteligentes que não podem ser ignorados, porque ficaria mal. Manuel Sobrinho
Simões discursa no 10 de junho, Pedro Guedes de Oliveira coordena o INCoDE Portugal
2030, Alexandre Quintanilha é deputado, Augusto Santos Silva e João Pedro Matos
Fernandes (a quem desejo uma boa recuperação) são ministros. Em épocas de
preparação de programas eleitorais, o círculo alarga-se, mas as reuniões são em
Lisboa e a horas (18 ou 19) adequadas para favorecer uma noite de hotel em
Lisboa, pois o regresso ao Porto no mesmo dia é inviável. Participação
intermitente equivalente a esquecimento.
Diga-se em boa verdade que a organização endógena dos “índios” também não
ajuda. Quase sempre atomizados e sem uma estrutura regular de encontro, reflexão
e tomada de posição, os mais proeminentes são presa fácil para o pescar à linha
e ainda bem que conseguem quebrar o isolamento.
Para maior tragédia, o PSD, que chegou a cultivar um pensamento descentralizador,
tem hoje essa cultura aprisionada por grupos de interesses meramente locais e
no seu pensamento político global deixou de ter qualquer orientação em matéria
territorial e de descentralização. Como muitos se recordam, foi caricato o governo
PAF ter iniciado as negociações do Portugal 2020 sem qualquer proposta ou
modelo de política urbana, tendo sido as autoridades de Bruxelas que
praticamente obrigaram o governo a montar e à pressa uma política urbana.
Com PS e PSD aprisionados nas suas contradições centralistas e de
proliferação de grupos de interesses locais e como do Bloco de Esquerda e do
PCP por razões de princípios constitutivos não poderá esperar-se nada de
relevante em matéria de modelo descentralizador, temos pela frente um deserto.
A candidatura à Agência Europeia do Medicamento nem sequer um oásis poderá
representar.
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