(Não é usual
neste blogue reproduzirem-se artigos completos de autores exteriores ao
Interesse Privado, Ação Pública, mas a qualidade do texto de Paulo Sérgio
Pinheiro, e a farsa
política em que o Brasil está a transformar-se justificam a exceção, divulgando
um texto que apesar de publicado no New York Times teve pouca audiência em
Portugal …)
Respondo assim ao pedido de divulgação de Pedro de Souza, amigo comum do
Saudoso Artur Castro Neves, alguém que conheci em boa hora quando aceitei
divulgar no Porto um texto do grande economista brasileiro Celso Furtado sobre
cultura por solicitação de sua mulher Rosa Aguiar Furtado. Em tempos em que a
projeção mediática portuguesa parece vidrada no juiz Moro e no tema da delação
premiada, a posição de Paulo Sérgio Pinheiro vai à raiz do problema.
Eleições diretas o mais rapidamente possível. Quanto mais persistente for
este pântano do Congresso brasileiro e dos seus interesses ocultos cada vez
mais claros (passe o paradoxo), mais a democracia brasileira sai ferida de
credibilidade. Face a este pântano lodoso e assumidamente corrupto, os motivos
que terão dado o pretexto para a destituição de Dilma Roussef são uma
brincadeira de criança.
Aqui fica o artigo traduzido com prazer por este vosso amigo:
“A fratura da liderança política brasileira
PAULO SÉRGIO PINHEIRO
New York Times Open Editorial
4 de Junho, 2017
SÃO PAULO, BRASIL — Um ano depois da farsa do impeachment de Dilma Roussef,
o Brasil mergulhou de novo numa crise. O já frágil apoio do Presidente Michel Temer
evaporou-se em poucas horas após a revelação de gravações da sua conversa com
Joesley Batista, um empresário do setor agroalimentar. Numa conversa
secretamente gravada em março, o Sr. Batista comunicou ao Sr. Temer as
diferentes vias que utilizou para obstruir a justiça. Alguns dos principais
aliados do Sr. Temer no Congresso, incluindo Aécio Neves, o senador que perdeu
por pouco a eleição presidencial de 2014 para Dilma Roussef, foram também
apanhados em gravações solicitando pagamentos ao Sr. Batista.
A crise atual não emergiu com surpresa. As práticas notoriamente corruptas
do partido do Sr. Temer, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB)
eram do conhecimento generalizado da elite económica brasileira e dos media que
apoiaram a sua ascensão ao poder e que nela viram uma oportunidade de ouro para
impor um programa de austeridade impopular. Poucos meses após ter tomado o
poder, seis dos seus ministros tiveram que resignar devido ao seu envolvimento
em vários escândalos de corrupção. Era apenas uma questão de tempo até que a
evidência de que o presidente estava também envolvido em práticas ilegais fosse
clara.
Na origem desta corrupção endémica está a consolidação do poder de alguns
players que manifestam uma completa desconsideração pelo processo democrático e
pelo papel da lei. Hoje, largos segmentos da sociedade estão sujeitos a
discriminação racial e e a desigualdades económicas profundas. A Justiça é a
maioria das vezes inacessível aos pobres, e os funcionários do Governo são
raramente sujeitos à prestação de contas.
Apesar da eleição de presidentes progressistas, sentiram falta de uma
maioria ativa no Congresso. Este é um dos mais nefastos legados do sistema
político que vigorou nas duas últimas décadas. Os presidentes foram obrigados a
constituir coligações – frequentemente alianças bizarras – para garantir a
governabilidade. Grupos de poder arcaicos e corruptos que estão
sobre-representados no Congresso tiveram um papel crucial no governo. O PDMD de
Temer, por exemplo, esteve sempre representado no governo desde 1985.
O Congresso Nacional Brasileiro é um flagrante exemplo de um sistema de
representação política distorcida. Homens de negócios brancos controlam cerca
de 70% dos lugares. As mulheres controlam apenas 10% e os Afro-Brasileiros
outros 20%, num país em que são a maioria. As campanhas são caras e os partidos
políticos proliferaram (são hoje 39), vendendo frequentemente o seu apoio e
tempo de antena em troca de benefícios dos partidos de governo. As empresas
mais ricas que concorrem pelos projetos de grandes infraestruturas financiam
regularmente os candidatos para assegurar o seu próprio interesse. Normalmente,
o apoio financeiro é concedido por debaixo da mesa e está fora dos livros. JBS,
o gigante conglomerado da produção de carne detido pelo Sr. Batista, confessou
ter financiado as campanhas de pelo menos 1/3 dos membros do atual Congresso.
Sem adequado controlo e supervisão, só os que pagam é que têm voz. Por
exemplo, o speaker da Câmara Baixa, Rodrigo Maia, é acusado de vender o seu
apoio em troca de favores na área das concessões de aeroportos que beneficiaram
uma empresa de construção em troca do apoio à sua campanha. Cerca de 35% das
alterações propostas na reforma das leis do trabalho foram concebidas não no
Congresso, mas nos escritórios das federações brasileiras da indústria,
finança, comércio e transportes. O poderoso lobby agrícola no Brasil conseguiu
fazer passar um relatório chocante que recomendava o desmantelamento da agência
de negócios indígenas, FUNAI, a revisão das regras sobre as reivindicações de
terras e a perseguição dos ativistas da defesa dos direitos dos índios. Os
grupos de indígenas foram mesmo proibidos de participar nas sessões em que o
relatório foi discutido.
Para onde irá o Brasil depois desta nova onda de escândalos? A queda do Sr.
Temer é aguardada como quase certa dada a magnitude das provas contra ele. Mas
a coligação governamental está a mantê-lo no poder até que encontre um
substituto credível para prosseguir as medidas de austeridade e limitar as
investigações sobre a corrupção. E ainda assim os resultados são imprevisíveis.
As tensões estão a crescer rapidamente à medida que grupos cada vez mais
numerosos na sociedade civil questionam a legitimidade da administração do Sr.
Temer. A violência e a repressão já emergiram nos protestos urbanos bem como
nas áreas rurais de Mato Grosso e Pará, onde camponeses foram assassinados em
disputas de terras.
Dado este contexto, a única saída consiste em identificar uma nova
liderança com legitimidade para restaurar o respeito pela governação e realizar
eleições diretas. Mas a Constituição brasileira estabelece que o Congresso deve
realizar uma eleição indireta para substituir o presidente se o lugar ficar
vago nos dois últimos anos do período presidencial, como é o caso. No mínimo, fortalecer
o Congresso com um terço dos seus membros já sob investigação criminal
constitui uma desmoralizante – e perigosa – continuação do status quo corrupto.
Os desafios legais e políticos para realizar uma eleição indireta
colocam-se ao Congresso muito antes da crise mais recente. No entanto, eles
foram firmemente bloqueados pela maioria dos seus membros, que não pretendem
largar o poder e pela elite económica que está assustada com o regresso
possível da esquerda ao poder através de uma eleição direta.
A lição mais amarga que aprendemos é que a corrupção continuará a ser uma
ameaça sistémica até que haja uma profunda revisão da lei eleitoral e até que a
prestação de contas se torne uma rotina para todos. O financiamento público das
campanhas e a cobertura de custos podem conter a generalizada pressão dos lóbis
económicos. A qualidade da representação no Congresso pode melhorar por via do
estabelecimento de um limiar eleitoral para representação dos membros do
congresso e do Estado refletindo a demografia corrente. Infelizmente, todas
estas soluções exigem que o Congresso atue e os seus membros conseguir por
repetidas vezes impedi-las no passado de modo a impedir o enfraquecimento do
seu poder.
Quaisquer que sejam as soluções que sejam encontradas no curto ou no longo
prazo, a política no Brasil continuará a padecer de instabilidade até que os
eleitores sejam autorizados a compor a fraturada liderança política da Nação,
seja no ramo executivo ou no legislativo, recuperando algum controlo da sua
democracia”.
Paulo Sérgio Pinheiro é um cientista político e presidente da Comissão de
Inquérito Internacional Independente das Nações Unidas sobre a República Árabe da
Síria, sediada em Genebra.
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