(Bem sei que a motivação de muita gente que tem participado nos trabalhos do Conselho Nacional de Educação não está no seu ponto mais alto e que alguns em conversas de foro privado exprimem essa insatisfação. Mas como os nossos leitores mais atentos puderam seguramente compreender não sou como homem do planeamento muito propenso a mudanças disruptivas e radicais. Sou antes um entusiasta do que designo de margens de transformação possível para mudar um estado de coisas sobre o qual trabalhámos o nosso esforço de racionalização do planeamento. Esta posição não equivale rigorosamente ao que muitos designam de incrementalismo no planeamento. Não é exatamente isso. É antes a preocupação em não propor mudanças que não correspondam a pontos ou bases possíveis em que nos possamos apoiar para sustentar uma dada viragem. Uma dessas margens de transformação possível está no modo como compreendemos um problema ou manifestações mais recentes e densas da raiz desse problema. Foi nessa medida que concedi neste blogue alguma importância ao Estado da Educação de 2022 publicado em 2022 e sabemos que esse documento é gerado, não me perguntem agora se coletivamente ou não, no Conselho Nacional de Educação. Mantenho o meu ponto de vista agora que está publicado o Estado da Educação de 2023 publicado em fins de dezembro de 2024, esperando que a sociedade civil se encarregue de dinamizar discussões de vários ângulos sobre o documento.
Tenho para mim, e em diversos trabalhos profissionais tenho tentado suscitar essa interpretação, que o sistema de educação e formação português (e reparem que falo em sistema de educação e formação e não apenas em sistema de educação) deve ser entendido como um sistema a debater-se entre a inércia e a mudança. O sistema é pesado, já era pesado que bastasse na visão restrita de sistema de educação (que o digam alguns Ministros que por lá passaram) e nesta extensão para a formação, além de cada vez mais centralizado, enfrenta problemas gigantescos de governança. Ainda recentemente, a OCDE abalou (ou melhor deveria ter abalado a sociedade portuguesa) com a publicação de um relatório que evidencia a trágica posição portuguesa em matéria de certificação de competências da população adulta, numa perspetiva bastante transversal que não interpela apenas a população mais velha, mas incide também surpreendentemente em população adulta mais nova, por exemplo o escalão dos 25 aos 34 anos.
Os intelectuais portugueses mais próximos das questões da educação têm andado engalfinhados a discutir a consistência de conceitos como “qualificações” e “competências”, dividindo-se em dois grupos, os que odeiam o conceito de competências por ser demasiado instrumental e produtivista e os que o glorificam. Devo confessar com algum orgulho que nunca dei para esse peditório. Sempre entendi que as qualificações existem por si, mas que adiar o confronto das mesmas com a sua aplicação concreta em contextos de trabalho concretos e em situações profissionais também concretas equivale a viver apenas no terreno da imaginação. Devo aqui referir que o facto de ter podido trabalhar na Quaternaire com um dos grandes especialistas europeus e mundiais na abordagem das competências moldou para sempre o meu entendimento destas questões. De facto, se quisermos ser competentes no quadro de uma situação concreta, hoje sabemos que esse desempenho será o resultado bem-sucedido do poder pessoal de combinar recursos (os conhecimentos, os saberes-fazer, os saberes-agir), mobilizando para o efeito recursos que estão muito além do que convencíamos designar de qualificações.
O que o relatório atrás mencionado da OCDE nos traz de novo é ajudar-nos a compreender que as baixas certificações de qualificações (já abundantemente conhecidas e referenciadas na sociedade portuguesa) e a agora evidenciada (OCDE) baixa certificação de competências não podem ser entendidas isoladamente. Aliás, os portugueses deveriam perceber isto melhor do que ninguém. Em tempos muito recentes, Portugal apresentava taxas de abandono e de insucesso escolar que nos envergonhavam a todos. Sabemos também que combatemos esse fenómeno de modo assinalável, sobretudo pela rapidez em que o conseguimos. Mas o peso desse abandono em matéria de baixa certificação de qualificações haveria de algum modo ter repercussões em matéria de certificação de competências.
Considero que o relatório OCDE é mais um forte abanão no tal sistema que se debate entre a inércia e a mudança e que traz aos ombros um problema sério de governança, com reflexos também sérios na qualidade das políticas públicas. Responder a um problema de dimensão estrutural tão forte como o da baixa certificação de competências que atravessa toda a população adulta exigiria uma revolução sistémica na oferta de formação de adultos que este sistema é provavelmente incapaz de aceitar e/ou de promover. Mas que será necessário dar uma volta séria à formação de adultos disso não tenho dúvidas, sendo necessário que os processos de Reconhecimento, Validação e Certificação de Competências (os conhecidos RVCC) sejam pontos de partida de percursos formativos consistentes, suscetíveis de mitigar o problema agora friamengte exposto pelo relatório da OCDE.
Mas é do Estado da Educação 2023 que reza o título da crónica de hoje. Ora, entre outras temáticas que explorarei em próximos posts, o Relatório do CNE elege como uma das suas principais preocupações – a baixa qualidade das aprendizagens, desde a educação básica à educação superior. Ou seja, combinando os dois relatórios, o da OCDE e o do CNE, temos a tempestade perfeita do pior dos dois mundos – temos baixa certificação de competências e a qualidade da aprendizagem que suporta a desejada melhoria de qualificações inspira fundados receios.
Estejamos atentos a esta evidência trágica e digam-me lá se há pachorra para aturar as distorções do que é efetivamente problema estrutural da sociedade portuguesa?
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