quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

NA MORTE DE COUTO DOS SANTOS

A notícia da morte de António Couto dos Santos (ACS) foi chocante. Como quase todas as mortes o são, digamo-lo com frontalidade. No caso, as circunstâncias apresentaram-se fortemente agravadas: convenhamos que um corpo a boiar no lago de um campo de golfe não é de todo normal nem previsível, deixando no ar um sentimento de grande desconforto e amargura.

 

Conheci razoavelmente bem ACS durante o tempo em que exerceu atividade profissional a Norte, sobretudo no quadro da Associação Empresarial de Portugal (AEP), onde esteve treze anos. Era sem dúvida um homem enérgico, focado e realizador, mas sempre me assaltou um significativo grau de dúvida quanto à sua visão e ao rumo que imprimia aos projetos e negócios em que se envolvia. No essencial, diria que ACS não era bem o que alguns sobre ele afirmam, naquele misto de comiseração exaltada que frequentemente marca o assinalar dos desaparecimentos, muito na linha daquela velha máxima de que “depois de mortos, todos somos vistos como tendo sido grandes”.

Veja-se como Jaime Quesado apontou de jato no JN “o exemplo de Couto dos Santos”, uma nota entre muitas outras que me chegaram com igual sentido indiferenciado e complacente, sem que para tal ali apresente mais do que palavras genéricas e pomposas ou um vislumbre de conteúdo concreto. Cito, entre “um percurso muito rico na área empresarial”, “o grande obreiro de uma política de juventude no nosso país”, “soube como ninguém dar o seu melhor pelo projeto de um país mais moderno, coeso e justo e a sua visão estratégica esteve sempre presente”, “era uma pessoa com uma inteligência rara, uma visão única do futuro, que dedicou toda uma vida política, cívica e empresarial a interpretar a realidade dum país para o qual também queria uma agenda de ambição global”, “a falta de ambição e de um sentido de futuro, sem respeito pelos fatores tempo e qualidade não era para ele tolerável nos novos tempos globais”, “era um homem onde a vontade de fazer coisas novas e diferentes o motivava a participar sempre em novas iniciativas, sabendo melhor do que ninguém interpretar o sentido do tempo e a importância de se ser diferente num mundo onde tudo é cada vez mais igual” e “a memória de António Couto dos Santos continua bem viva em todos aqueles que acreditam num projeto de futuro para a nossa sociedade e a nossa economia.”

 

À sua maneira, foi Cavaco Silva quem melhor disse sobre ACS, especialmente porque o teve como colaborador (entre secretário de Estado e ministro) na melhor fase da vida profissional e política do cidadão ora falecido. Independentemente de controvérsias, que as houve em vários planos e dimensões, ACS foi um agente atuante e relativamente importante no quadro do “cavaquismo”, seja na área da Juventude, dos Assuntos Parlamentares, da Comunicação Social (quiçá o domínio em que mais decidiu em termos de futuro por via da liberalização do setor e do estímulo à criação das televisões privadas), do Desporto ou da Educação – Cavaco referiu-se a ACS como “ministro das questões particularmente difíceis” e lembrou, com a objetividade possível, algumas das realizações por ele impulsionadas.

 

Porque, na realidade, tudo quanto se sabe sobre a atividade extrapolítica de ACS tem os seus busílises. Por um lado, e ainda enquanto ministro, foram divulgados casos nebulosos em sede de pagamentos governamentais à Direção-Geral dos Desportos e de favorecimento de uma empresa de construção civil (Ensul) em troca da compra de um apartamento (que não viria a ser concretizada), situações que acabaram arquivadas numa época em que o alarido público provinha essencialmente de “O Independente” e em que a investigação judicial primava por ser bastante mais tolerante do que o é nos dias de hoje. Por outro lado, circularam também episódios diversos associados a ACS aquando da sua passagem pela construção da Casa da Música no Porto. Por fim, a teia de negócios de ACS floresceu durante a sua passagem pela AEP, onde acumulou altas funções executivas com atividades empresariais próprias (designadamente no Brasil e, mais tarde, na Rússia, país de que se tornou cônsul honorário até 2022), e desse período rezam variadas alegações de responsabilidade subjetiva, com destaque para o estado de pré-falência a que chegou a dita AEP (salva, de seguida, sob a batuta injustamente pouco reconhecida do Engº José António Barros).

 

Em suma: o que aqui pretendo sublinhar são, simultaneamente, dois pontos. O primeiro decorre de um lamento pelo trágico fim de ACS e do caráter imperioso de se lhe louvar a eficácia política executiva que patenteou, goste-se ou não das opções que tomou ou lhe foram dadas assumir. O segundo provem da necessidade de enfatizar a ideia de que raramente “o cu tem a ver com as calças”, isto é, da evidência sempre renovada de quanto a “inigualável maravilha” assacada aos que desaparecem mais não é do que um misto difuso de “pagamentos” de favores relacionais, tributos que caem bem em certas “bolhas” (mesmo se desfasados ou fora de tempo) ou uma prova da impressionante falta de exigência das nossas pseudoelites – ACS não tem culpa, ele próprio se remeteu, nos seus últimos anos de vida, a um muito modesto contributo para o bem-estar económico e social do País, talvez por lucidez pessoal mas talvez também porque definitivamente desiludido com o cinzentismo desligado que via pulular em seu redor.

Sem comentários:

Enviar um comentário