(A entrevista de Pedro Nuno Santos, PNS, ao Expresso e o eco da referida entrevista que o Expresso da Meia-Noite habilmente montou, ocupando claramente o espaço mediático deste fim de semana, representa finalmente algo que vale a pena discutir na política interna nacional. Tenho para mim que a fissura de pensamento entre a entourage política de António Costa e a do novo poder protagonizada por PNS foi na saída de cena do primeiro e nos primeiros tempos do seu consulado, eleições incluídas, claramente escamoteada, por razões óbvias, ou seja, devido ao poder eleitoral de Costa. Os ecos desta entrevista representam, assim, a primeira manifestação de que as coisas não estavam bem e que a divergência de pensamento é mais profunda do que os tempos mais recentes o sugeriam. Impressionado pelo alarme que a entrevista provocou, reli-a com atenção e tive de visualizar a edição do Expresso da Meia-Noite para tentar compreender, apesar do gozo que o deputado da mala do Chega provocou esta semana, o impacto mediático do assunto. Não vou chegar ao ponto de afirmar que a entrevista ao Expresso de PNS seja irrelevante e que a construção mediática a partir do Expresso tenha suplantado a possível gravidade do tema. O meu ponto é que a entrevista necessita de ser analisada com mais rigor. A minha dúvida é que PNS talvez não tenha controlado bem o tom que imprimiu à entrevista e, em meu entender, os próximos dias serão decisivos para compreender se PNS tem ideias seguras sobre o assunto ou se, pior a emenda do que o soneto, irá meter os pés pelas mãos e embrulhar-se em indecisões que serão bem piores do que o impacto controverso da entrevista…).
Vou desvalorizar as reações posteriores de Ana Catarina Mendes ou de Eurico Brilhante Dias e concentrar-me nos três pontos que podem ser considerados mais controversos na entrevista de PNS ao Expresso. Os três pontos são os seguintes: (i) a posição crítica enunciada sobre o mecanismo da manifestação de interesse, entretanto abolido pelo atual Governo de Montenegro, sem mecanismo ou solução alternativa entretanto criada, (ii) a declaração forte de que o país não estava preparado para acolher uma magnitude tão elevada de população imigrada; (iii) a para mim, mais controversa ideia de invocação das questões culturais para enquadrar a já referida imigração.
Quanto à rejeição a posteriori do mecanismo da manifestação de interesse como porta de entrada da imigração, se quisermos ser rigorosos já António Vitorino, que é talvez no PS a personalidade com mais curriculum para poder falar de imigração, se tinha pronunciado negativamente sobre o referido mecanismo. A persistência desse mecanismo enquanto porta de entrada para a imigração tem de ser compreendida no contexto da trágica transição implicada pelo desaparecimento do SEF e sua substituição por uma também atribulada constituição da AIMA. Esta coexistência foi obviamente mal calculada por Ana Catarina Mendes e António Costa como principal responsável, por isso não me choca (só me choca o atraso com que PNS terá despertado para o assunto) que o líder do PS exprima pensamento crítico quanto à aplicação que o Governo de Costa realizou desse mecanismo. O que parece mais discutível é que uma afirmação desta natureza venha a público sem qualquer discussão no interior do partido e dos seus principais órgãos, chocando obviamente com membros do partido que são deputados no Parlamento e que todo o direito de se defenderem e procurarem contextualizar o entendimento que tiveram. Mas é para mim indiscutível que a ideia da desmontagem do SEF sem uma AIMA mais solidamente instalada. Não é difícil encontrar no segundo Governo de Costa outras matérias de avaliação errada do ponto de vista do contexto em que persistiram.
A entrevista é pouco clara quanto ao modelo que PNS propõe para remediar a situação de crítica da manifestação de interesse e de crítica simultânea ao modo como o atual Governo está a equacionar o problema. A referência ao visto turístico exige maior aprofundamento explicativo e confesso que é matéria que na entrevista considero estar mal trabalhada.
Esperemos as cenas dos próximos episódios.
A segunda ideia potencialmente controversa é a de que o país e as suas principais instituições (educação, SNS, políticas de habitação) não estavam preparados para responderem a uma magnitude tão elevada de população imigrada. Não é novidade alguma que as estruturas de planeamento andam em Portugal pelas ruas da amargura, facto provocado pela desvalorização clara e absoluta da ideia de planeamento que emergiu na sequência da glorificação do mercado como mecanismo de alocação de recursos. Não tenho dúvidas de que a própria preparação do Acordo de Parceria do PT 2030 não antecipou em toda a extensão das suas implicações o surto imigratório que se avizinhava. Os casos registados de presença inequívoca das máfias de recrutamento de mão de obra estrangeira e as suas implicações, com cumplicidade clara de empregadores, em situações mais ou menos escabrosas de alojamento indigno de populações imigradas eram avisos solenes de que o pior estava para acontecer. Vários testemunhos públicos, entre os quais o deste vosso Amigo em alguns trabalhos de avaliação de políticas públicas, alertaram para a necessidade de um corpo coerente de medidas entre atração, acolhimento e integração de migrantes. E não é verdade que, tal como PNS o sugere, as políticas de habitação do PS, posteriormente remendadas pelo governo de Costa, tenham antecipado o forte choque que a imigração iria provocar no já complicado problema de défice de habitações, com exceção dos grupos sociais mais abastados.
Esta segunda ideia de PNS não é em si controversa, interessa antes compreender o que é o PS de PNS propõe para preparar o país (relativamente e não com planeamento antecipado).
A terceira ideia é a que me provocou mais engulhos de leitura, principalmente porque acho que é uma ideia errada e incompatível com uma ideia progressista das relações entre povos. É indiscutível que a população imigrada tem de respeitar as leis do país que a acolhe e os princípios legais que resultam da Constituição portuguesa. Se alguém proveniente de outros cantos do mundo invoca o seu modelo cultural para praticar por exemplo coisas como a violência doméstica aberta ou a mutilação vaginal, teremos de ser firmes na condenação a aplicação abusiva do princípio do relativismo cultural.
Mas acreditar que o contacto entre sociedades e modelos culturais gerado pela interação e movimento de pessoas pode ser gerido apenas pelo princípio de que os imigrantes terão implacavelmente de se adaptar ao modelo cultural e valores da nação que as acolhe é de uma miopia de pensamento profundamente reacionária e contrária ao princípio de que a interação entre culturas é em si própria um fator de progresso e desenvolvimento das sociedades.
Esta é na minha perspetiva a dimensão da entrevista de PNS ao Expresso mais controversa e, em meu entender, incompatível com o progressismo que associo ao PS.
Assim sendo, resta-me recomendar que PNS possa ler uma obra recentemente publicada pela TEMAS E DEBATES, de autoria de um Professor de Harvard, Martin Puchner, designada de CULTURA – UMA NOVA HISTÓRIA DO MUNDO. Garanto-lhe que essa leitura será sem dúvida mais proveitosa do que ouvir o que os seus assessores de meia-tigela terão para lhe dizer sobre a matéria.
É um bom conselho e PROBONO.
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