“Morreu o nosso amigo Tó Felino”, dizia o Whatsapp enviado pela Fernanda Gabriel na Quarta-Feira à hora do almoço, estava eu em Coimbra. Amiga comum, mas sobretudo a sua maior amiga de sempre a partir de uma relação nascida nas ruas de Monsanto (origem comum aos dois), a Fernanda exprimia daquele modo o misto de perplexidade e perda que assim a invadia.
Pessoalmente, e relevem-se-me os eventuais excessos de detalhes personalizados conheci o então Dr. António Felino, que se tornaria um dos mais ilustres médicos dentistas do País, há quase quarenta anos quando, recém-regressado do meu doutoramento em Paris, colaborava no Gabinete de Estudos do BPA e vivia em dificuldades perante o desgraçado estado da minha dentição em resultado de um tempo em que as dores de dentes se tratavam com chumbos às três pancadas ou meras e definitivas extrações; uma enfermeira do posto clínico do banco referiu-me o nome de um jovem muito prometedor e competente que, apesar de estar ainda em início de carreira, me poderia valer e marcou para ele uma primeira consulta na “Clínica do Amial” (que partilhava com outros colegas de profissão). Lá me dirigi no dia e hora aprazados, tendo sido analisado cuidadosamente pelo dito especialista; este, à boa maneira direta e frontal que fui aprendendo a reconhecer no seu modo de estar, diagnosticou um trabalho complexo e demorado que lhe parecia necessário ser feito para que eu repusesse a qualidade de vida oral e alimentar que me vinha faltando, não sem acrescentar algo à bruta: “diga-me se está disposto a vir cá todas as semanas durante seis meses e a confiar nesta minha avaliação, incluindo a padecer de alguns momentos de inevitável sofrimento, ou, sem qualquer problema para mim, se prefere pura e simplesmente sair sem que eu lhe cobre a consulta para prosseguir o seu caminho, na busca de outras soluções ou na esperança vã de que o mal não se agrave”. Olhamo-nos olhos nos olhos por breves instantes e estiquei-lhe a mão direita para selar um trato que seria escrupulosamente cumprido de parte a parte e geraria uma amizade sincera que se foi estreitando nos anos subsequentes.
O Prof. António Felino – porque também se doutorou, entretanto, e acabou por fazer uma carreira académica na Universidade do Porto (com incursões no exterior, especialmente em Nova Iorque) – nunca deixou de aprofundar aquela que considerava a sua verdadeira e mais querida atividade profissional na clínica. E, posso bem testemunhá-lo – assente na ausência de qualquer reserva relativamente àquela cadeira maldita que todos mais ou menos abominamos e na enorme qualidade que resultou do seu trabalho –, era um dentista fora de série, quer na intuição com que detetava os problemas quer na concretização dos tratamentos que fazia com visível empenho e gosto. Por brincadeira, dizia-me recorrentemente que os seus sucessivos alunos conheciam bem a minha boca tratada por ele porque as radiografias que dela possuía (o antes e o depois) eram objeto de frequente uso ilustrativo no tocante a determinados diagnósticos e práticas corretivas.
Por fim, destacaria ainda que o António tinha uma alegria e um prazer de viver que o tornava fascinante pelo diversificado entusiasmo que patenteava – pela natureza, pela caça, pela filatelia, pelas canetas, pelo vinho, pelas mulheres, pelos filhos, pelos amigos, pela investigação, pelo hands on cirúrgico... Era impulsivo e parecia até ter mau feitio pela forma brusca com que tendia a reagir, mas tal apenas correspondia a uma capa sob a qual se escondia um conversador inveterado e um espírito curioso e aberto, no fundo um ser generoso e decente, um homem genuinamente bom. O desaparecimento do Tó Felino – como escreveu a Fernanda – foi uma nova pedrada inesperada e triste que recebi nesta passagem de 2024 para 2025, um sinal incontornável de que a vida corre célere e que é cada vez mais a geração de que sou parte que está a fechar o seu ciclo.
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