A crónica de José Pacheco Pereira (JPP), no “Público” de Sábado (“Percepções”), saiu-lhe particularmente inspirada no tratamento de um assunto que tende a ser central na presente fase de uma vida portuguesa cada vez mais nova-rica, aparolada e genericamente ignorante. Justifica-se, por isso, que aqui consagre ao dito texto um breve apontamento, entre o simplesmente evocativo e a saliência de alguns highlights a reter.
Com a devida vénia, escolho três excertos que reputo de sintomáticos em relação ao lamentável estado da arte que impera entre nós:
· “As conversas dos concorrentes [nos reality shows como A Casa dos Segredos] e o comentário a essas conversas depois de cada ‘cena’ por parte de um conjunto de homens e mulheres vindos do nosso pobre jetset, que aliás são completamente idênticos na cultura, vocabulário e “mundo”, deviam ser estudadas na academia como exemplo de como o país está mergulhado numa mistura de ficção emocional, coreografia afectiva e desertificação cultural, ou seja ignorância.”
· “Era só uma questão de tempo até estas ‘percepções’ chegarem ao Governo, cuja visão não é muito diferente das “influencers” e dos reality shows, a que se soma a competição política com o partido das ‘percepções’ que é o Chega. É isto que vende o conselho profissional dos negociantes de ‘percepções’, ou seja das agências de comunicação.”
· “(...) estas ‘percepções’ crescem por várias razões, a mais importante das quais é o crescimento do ressentimento social, cujas raízes têm muito a ver com o modo como na sociedade actual há uma desvalorização social, uma perda de dignidade, que começa no salário, na habitação, no emperrar do elevador social, a que se acrescenta a crise dos partidos do “arco da governação”. (...) Depois, porque, desde os anos da troika, deu-se uma impregnação de meia dúzia de lugares comuns sobre a economia, o capitalismo, o papel do trabalho, que transformou partidos como o PSD e o PS em partidos cujos nomes não significam hoje quase nada. (...) E, por último, e muito mais importante do que se pensa, porque resulta de uma mistura do deslumbramento tecnológico com o degradar da circulação do saber – seja na comunicação social, seja no ensino, seja nos consumos de informação – e na redução do debate público à arregimentação e ao radicalismo das invectivas nas redes sociais, associado a muita preguiça socialmente instigada, que está a incrementar a ignorância agressiva.”
O articulista conclui com um parágrafo de elogio do combate (“Como é que se combate isto?”). De onde quero destacar dois períodos de corajoso posicionamento:
· “estudando, sim estudando, lendo mais Marx e Gramsci e olhando para o mundo dos telemóveis, das redes sociais, da sociabilidade pobre dos likes e perguntando-nos como é que meia dúzia de gente aos saltos no Tik-tok tem mais efeito numa escola do que professores e pais, muitas vezes iguais nos vícios que deviam combater”;
· “lutar pela melhoria dos salários, por pôr mais dinheiro no bolso das pessoas, para que elas possam ser mais livres, ter maior sentimento de dignidade e ter meios para ultrapassar as ‘percepções’ que as prendem mais do que libertam”.
Há realmente leituras que nos conduzem à perceção, muito nossa, de nada termos a acrescentar ao que se acabou de captar. Foi este o meu caso em relação às “Percepções” de JPP.
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