domingo, 19 de janeiro de 2025

PREPAREM-SE!

 

(Imagem que abre o artigo de Henry Farrel na Foreign Affairs)

 (Uma nova era de sobressalto abre-se com a tomada de posse de Donald Trump. Apetece dizer, apertem os cintos, pois a viagem vai ser plena de instabilidade no voo e o que os leigos em aeronáutica designam por poços de ar irão multiplicar-se, com aquela sensação estranha que durante alguns segundos descemos em abismos profundos. Receio que a metáfora aeronáutica não seja suficiente para definir os sobressaltos que nos vão perseguir durante os próximos tempos. Gente profundamente conhecedora dos meandros da administração americana, sobretudo aquelas entidades e serviços responsáveis pelo controlo e construção diários da hegemonia americana no mundo, tem refletido profundamente sobre os contrapontos de poder e contrapoder que irão manifestar-se nos corredores da decisão. Vou hoje recorrer a um longo artigo bem fresco de Henry Farrel na Foreign Affairs de janeiro/fevereiro de 2025, que pode ser considerada uma recensão crítica de duas obras publicadas por esse tipo de gente com grande conhecimento dos meandros da administração americana. Vou deixar de lado o aspeto da recensão crítica para me concentrar no que o artigo de Farrel tem de melhor, a análise aprofundada do contexto de administração americana que a chegada de Trump e seus parceiros ao poder vai fortemente impactar.)

Especialmente até ao abalo que o 11 de setembro representou, que perpetrou a conhecida transição de ameaças longínquas para um ataque bem concreto em território americano, com todas as consequências na gestão da chamada segurança do Estado, o domínio sobre o sistema financeiro num contexto em que o dólar permaneceu sendo a grande moeda de referência nas trocas e pagamentos internacionais. Esse domínio das redes financeiros combinado com a superioridade do dólar permitiu aos americanos castigar os seus principais adversários na medida em que perder a intermediação do dólar era considerado ser algo de impensável para as principais entidades com negócios realizados com as instituições e personalidades presentes na lista negra das autoridades americanas. A inovação do sistema SWIFT que todos conhecemos de transferências para o estrangeiro que sejamos obrigados a fazer é uma forma poderosa de controlo de operações financeiras, pois através dele as autoridades americanas sabem de onde vem e para onde vai o dinheiro. Só muito recentemente o universo das criptomoedas veio perturbar a estabilidade desse controlo, ainda que a China se esforce a todo o vapor para encontrar soluções que permitam a fuga à hegemonia do dólar como referencial das trocas internacionais.

Num tempo muito mais recente, a defesa da hegemonia americana avançou por mundos bem mais difíceis de controlar do que a das relações financeiras em contexto de hegemonia do dólar. Estou a referir-me à perceção de que os americanos enfrentavam vulnerabilidades nas cadeias de valor internacionais em matéria de autonomia tecnológica, o que deu origem a medidas como as sanções económicas e o controlo das exportações, visando com as mesmas causar dano aos seus adversários. Mas uma coisa é controlar o SWIFT e outras formas de regulação financeira, outra bem diferente é tentar dominar as cadeias de valor internacionais.

Hoje assiste-se a uma corrida interessante: por um lado, nos EUA, a superioridade na inteligência artificial (IA) é vista como uma forma de fazer avançar a hegemonia mundial; por outro lado, a China apostou em vencer a corrida das tecnologias verdes e elétricas das quais os servidores da IA e toda a panóplia digital irá depender.

Ora, é neste contexto que o “elefante” Trump chega para partir a loiça toda. Farrel tem uma definição curiosa de Trump – “é o Presidente que aparecerá a defender uma política baseado no conselho de com quem tenha falado em último lugar”. Ou seja, o mestre da imprevisibilidade vai chegar ao poder com uma corte contraditória em matéria de orientações para continuar a defender a hegemonia americana.

Assim, por exemplo, Trump tem aparecido em público a defender claramente os impostos aduaneiros em detrimento das sanções económicas e dos controlos das exportações tecnológicas, o que não deixará de provocar estragos nas orientações da administração americana. Mas em contrapartida, um dos seus apaniguados, o Secretário de Estado Marco Rubio tem-se revelado um forte defensor das sanções económicas. Confusos? Sobretudo perplexos pelo caos que se poderá instalar com princípios de intervenção tão diferentes. Mas a confusão não ficará por aqui. Entre os grupos mais próximos de Trump, está gente amante da liberdade do mundo das criptomoedas. Mas o mundo das bitcoins é um mundo que escapa claramente à regulação americana. Mais confusos? Bastante e suficiente para nos interrogarmos sobre qual será o racional da nova administração. Cheira-me que o critério será o de conceder os maiores ganhos possíveis a quem o apoiar, nem que para isso signifique abrir a porta ao caos. Lembra-me a história das quadrilhas que assaltam um banco e que o racional de cooperação entre os seus membros é tão só a clarificação da percentagem que cada um vai ganhar.

A tecnocracia que se prepare e nós também. Teremos uma administração potencialmente caótica a fazer de conta que hegemoniza o mundo em nome do interesse americano.

O que suscita uma interrogação semântica: como designaremos a nova fase do capitalismo que se perfila diante de nós?

Sem comentários:

Enviar um comentário