O “Público” assinalava-o há dias, mas nunca será demais insistir: a avaliação da eleição de Trump à escala internacional, isto é, nas diversas regiões do mundo, evidencia uma incrível diferenciação entre o Ocidente (leia-se Europa e a Ásia democrática, Coreia do Sul no caso) e as restantes geografias (incluindo a Ucrânia, certamente por razões defensivas muito próprias). Surpreende, ou talvez nem tanto, a apreciação positiva da segunda dose de “trumpismo” na Índia, no Brasil, na África do Sul ou na Indonésia (já para não referir a Arábia Saudita, a Rússia, a China ou a Turquia). Ou seja: a centralidade da ideia de Ocidente já teve manifestamente melhores dias e torna claro o confronto que os tempos próximos nos reservam...
quinta-feira, 30 de janeiro de 2025
terça-feira, 28 de janeiro de 2025
A GARGANTA FUNDA DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL
(Até há bem poucos dias, a narrativa dominante sobre a guerra tecnológica entre os EUA e a China rezava mais ou menos o seguinte. Ao passo que os EUA apostaram forte na inteligência artificial, esperando dominar essa guerra por essa via, a China investiu fortemente nas tecnologias elétricas e na descarbonização, adquirindo uma superioridade difícil de colmatar no curto e médio prazo. Por outro lado, a China sabe que o mundo da inteligência artificial e do digital em geral é grande produtora de emissões, pelo que não estará também a salvo dos desafios da descarbonização. Pois esta narrativa corre o risco de estar obsoleta e ter de ser atirada para o lixo, já que pelo que se passou nos últimos dias a China também não ter andado a dormir em matéria de inteligência artificial.)
De facto, um pouco inesperadamente, a China lançou no mercado uma aplicação de inteligência artificial, a DeepSeek, que agitou os tecnólogos e arrasou a posição de capitalização de algumas tecnológicas americanas, como por exemplo a NVIDIA, que teve perdas fabulosas num único dia, enquanto a aplicação chinesa era a mais descarregada por esses dias. O New York Times e o Washington Post têm concedido ampla cobertura ao fenómeno.
A história da DeepSeek ainda está por contar, mas tudo indica que se trata de uma start-up que apostou forte no desenvolvimento da inteligência artificial e acabou por surpreender o mercado.
Não será seguramente com a DeepSeek que o totalitarismo chinês sairá de cara lavada. Mas não deixa de ser curioso ter-se tratado de uma simples start-up a emergir do pouco que se conhecia da mesma e a complicar a narrativa de que a IA estaria na China com anos-luz de atraso.
Para já, interessa-me sobretudo a confirmação da minha intuição de que a guerra comercial e tecnológica, ou pelo menos as intenções de a promover, entre os EUA e a China foi alicerçada inicialmente numa desvalorização perigosa do potencial chinês.
Não posso esquecer-me da máxima que utilizava nas minhas aulas de economia da inovação quando alertava os alunos para o facto de 1% de engenheiros e tecnólogos a fazer investigação na China representarem uma máxima crítica sem paralelo na chamada fronteira tecnológica da I&D e da inovação. E, como sabemos, para uma dada produtividade da produção de ideias, quanto maior for a massa absoluta de investigadores maior também o output possível em termos de conhecimento.
E SE HANNAH ARENDT AINDA ANDASSE POR CÁ?
(Hannah Arendt é daquelas escritoras, ensaístas e jornalistas, são célebres as crónicas de Arendt para a New Yorker sobre o julgamento de Eichmann em Jerusalém, que lhe valeram críticas acirradas de amigos e judeus em geral, que vale a pena revisitar neste período trágico de interrupção das esperanças do pós 2ª guerra mundial. Especialmente a sua reflexão sobre o fenómeno do totalitarismo é hoje essencial para compreender o mundo atual na sua configuração cada vez mais estranha e ameaçadora para a democracia. O jornalista Rafael Narbona publicou no suplemento El Cultural do jornal digital mais lido em Espanha, o El Español um inquietante artigo, no qual discutindo o conceito de político de Arendt se questiona se o trumpismo é uma nova forma de fascismo. Mais do que o tema central da crónica, interessa-me sobretudo a interpretação que o jornalista espanhol realiza da obra de Arendt do ponto de vista do que a escritora pensava ser a não política, ou a não democracia.).
Centro, por isso, o meu post em dois excertos do artigo de Narbona que estão em linha com as minhas inquietações de momento:
“(…) Arendt defende que a pluralidade e o direito a ser ouvido é a essência da política ou, se o preferirmos, do poder que se constitui a partir de um debate público e aberto. As guerras e as revoluções não são acontecimentos políticos, mas apenas crises que fecham o espaço criado para polemizar sem conduzir a enfrentamentos cruéis. Para Arendt, a violência não é a continuação da política por outros meios, nem a parteira da história. As suas consequências imediatas são a destruição da convivência pacífica e ordenada, que é o objetivo da política.
(…) A essência do totalitarismo é criar um mundo homogéneo, sem diversidade nem discrepância. Uma espécie de melodia que se repte indefinidamente, sem jamais alterar as suas notas. Pelo contrário, a política, um termo que Arendt utiliza praticamente como um sinónimo de democracia, surge para garantir a pluralidade. Não se trata simplesmente de respeitar a alternância, mas apenas de criar um espaço em que homens e mulheres podem esgrimir a palavra para mostrar livremente quem são. Só desse modo se pode iluminar uma comunidade baseada no intercâmbio fecundo e não na mera submissão ao mais forte.
A política não é uma extensão da família, uma unidade de convivência que se constrói a partir de afinidades e interesses comuns. A política é o terreno da diversidade irredutível. A sua meta é garantir o exercício da diferença num quadro de tolerância e igualdade. Ao contrário da massa uniforme e impessoal, os cidadãos caracterizam-se pela sua radical singularidade. Não há dois seres humanos idênticos. É graças a isso que a criatividade e a inovação estão garantidas.”
Como é óbvio, esta pequena introdução à política em Hannah Arendt não dispensa o mergulho no calhamaço que “As origens do totalitarismo” representam, obra máxima da ensaísta na explicação histórica de como o totalitarismo emergiu e se enraizou.
Mas esta interpretação de Narbona basta por si para vincar a relação entre a Política e a preservação da diversidade e da controvérsia. Porque é essencialmente isso que está ameaçado na deriva contemporânea que atravessa o mundo.
BOAS-VINDAS A ANSELMI
Obrigatória, hoje por hoje, uma saudação ao início de funções do novo treinador portista, o argentino Martín Anselmi (MA). A expectativa é imensa quanto à capacidade que revelará para dar a volta a uma situação desportiva deprimente e que já não ocorria há muitas décadas, tendo o seu discurso relativamente empolgante e os seus breves apontamentos quanto a ideias de jogo (de que “o adversário é o nosso maestro” constitui uma síntese feliz) deixado alguma “água na boca” aos mais fervorosos e crentes (aqueles que não valorizam argumentos de contraponto, como a juventude, o escasso curriculum, a origem latino-americana do dito novo técnico e os estranhos episódios ligados à rescisão de MA com o Cruz Azul do México). Estamos assim perante a oportunidade de na Quinta-Feira em Belgrado começar a ser virada a página negra destes meses, garantindo desejavelmente uma passagem aos playoffs da Liga Europa.
Por esclarecer ficará – espero bem que não para sempre, eu sei lá... – a razão de ser do falhanço de Vítor Bruno (VB), a solução de continuidade que fora inicialmente encontrada por André Villas-Boas (AVB). Não querendo acreditar que se tenha tratado de uma questão básica de competência para o exercício da função, ter-se-ão de encarar outras hipóteses que talvez devam conjugar o modo como algum balneário quis interpretar o “não vais ter sossego” que as paredes do Olival registaram – o sucesso de tal maldição foi notório, atingindo o seu clímax na Madeira e em Barcelos, e um VB atónito, e totalmente incapaz de compreender o que se lhe deparava, acabou empurrado a sair. Logrado o objetivo, e com Conceição transformado em “Conceicini” ao serviço do AC Milan (com um troféu já conquistado e respetivo charuto já devidamente disfrutado com o habitual bailado), a época do FC Porto pode agora recomeçar – decerto tardiamente mas quem sabe se ainda a tempo de uma qualquer vitória significativa, o que bem homenagearia a coragem e determinação com que AVB se lançou para o comando do clube e sua regeneração.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2025
O REGRESSO
(São imagens impressionantes. Não sei mesmo se são menos impressionantes do que as da devastação que Gaza sofreu com a ofensiva israelita de retaliação pelo ataque inicial do Hamas. Mas assistir à entrada de milhares e milhares de palestinianos em direção à devastação a que praticamente todas as infraestruturas básicas de Gaza foram submetidas é algo que só pode ser compreendido no quadro de uma profunda e inabalável identidade daquele povo com aquela faixa reduzida de território. A imagem que o El País publica apresenta-nos uma longa faixa em frente ao Mediterrâneo com população palestiniana recentemente entrada a partir do sul, alguns dos quais em direção à parte norte do território, não uma população encurralada, mas por agora esperançada em alguns momentos de paz e em reencontrar o seu refúgio anterior aos rebentamentos e ataques. Depois de alguns dias de hesitação e espera, uma achega ao acordo de tréguas entre Israel e o Hamas, que permitirá a libertação de uma refém israelita Arbel Yehud reclamada pelo governo de Nethanyau e de mais alguns palestinianos, abriu a porta ao regresso que a imagem representa. Isto sem que Trump ensaiasse ainda a pressão sobre o Egito e a Jordânia para acolher esta massa de gente, que não teve resultado algum. Como explicar esta caminhada para o encontro com a devastação? Só uma profunda identificação com um território exíguo que representa uma variável de aproximação remota à terra prometida pode explicar este estranho regresso. Movimento claramente mais espontâneo do que a encenação bélica coreografada pelo Hamas para documentar a entrega das reféns israelitas e demonstrar que a sua força militar ainda existe e não foi totalmente dizimada).
Destas imagens retiro a conclusão de que nem a força das armas e das bombas, a dimensão expressiva da devastação e a magnitude do número de mortes observadas em Gaza foram suficientes para afastar esta gente que agora regressa ao seu símbolo territorial identitário, por mais exíguo que ele seja e por mais desprovido de infraestruturas e serviços básicos que se encontre e que neste momento possam ser oferecidos aquela população.
Dando como certo que o apego israelita à sua terra não é menos identitário, e embora descontado o aproveitamento indecente da situação de guerra para expandir colonatos ilegais na Cijordânia, que uma governação internacional decente, mas inexistente, reporia nos limites anteriores ao ataque do Hamas, nada melhor do que esta observação nos permite compreender a importância do que muitos já consideram ser a miragem dos dois Estados. Porque só a garantia de estabilidade dos territórios de acolhimento desses dois Estados, o de Israel e o da Palestina, permitirá conter as hostilidades, não certamente suscetível de resolver ódios e incompreensões profundos, tanto mais densos quanto mais os períodos em que as armas falam mais alto, mas pelo menos capaz de assegurar tréguas nesse enfrentamento e o lançamento de bases para que as necessidades básicas sejam de novo respostas.
O movimento de todo este regresso tem uma força simbólica tremenda.
Para memória futura em 27 de janeiro de 2025.
EM CAUSA O BOM NOME DO PROTECIONISMO...
Após raros quatro dias sem blogar, eis-me aqui num regresso breve para responder aos amigos e leitores que me contactaram a registar a falta que já sentiam da minha palavra – muito grato por isso...
O gráfico que escolhi e acima reproduzo dá conta, de modo bastante expressivo, do que podem representar numa perspetiva histórica (quase dois séculos) os famosos direitos alfandegários ameaçadoramente prometidos pelo reincidente presidente americano. E a verdade é que, depois da pujança do protecionismo na segunda metade do século XIX e no período de entre grandes guerras mundiais, a afirmação do livre-cambismo é por demais visível a partir dos anos 50 do século passado (acompanhando a fase de ouro do crescimento mundial e o advento da globalização) e parece agora ir ser questionada pelas práticas de defesa nacionalista relativamente errática, discricionária e chantagista que Trump vai bramindo sem parar.
Para quem ainda considera haver um espaço de razoabilidade para justificar que alguns países recorram ao protecionismo como meio de estímulo ao seu crescimento e à sua transformação estrutural – e não me refiro apenas, mas também, ao chamado “protecionismo à indústria nascente” e à argumentação do clássico Friedrich List –, o descambamento protetor, grosseiro e distorcido do instável presidente obriga a repensar posicionamentos de princípio em matéria de política comercial. Tanto mais que o desmantelamento da Organização Mundial de Comércio (WTO), indisfarçavelmente dirigido ou paulatinamente organizado, pode estar na cabeça destrutiva do “trumpismo” mais destemperado...
domingo, 26 de janeiro de 2025
O PS DE CANDEIAS ÀS AVESSAS EM MATÉRIA DE IMIGRAÇÃO
(A entrevista de Pedro Nuno Santos, PNS, ao Expresso e o eco da referida entrevista que o Expresso da Meia-Noite habilmente montou, ocupando claramente o espaço mediático deste fim de semana, representa finalmente algo que vale a pena discutir na política interna nacional. Tenho para mim que a fissura de pensamento entre a entourage política de António Costa e a do novo poder protagonizada por PNS foi na saída de cena do primeiro e nos primeiros tempos do seu consulado, eleições incluídas, claramente escamoteada, por razões óbvias, ou seja, devido ao poder eleitoral de Costa. Os ecos desta entrevista representam, assim, a primeira manifestação de que as coisas não estavam bem e que a divergência de pensamento é mais profunda do que os tempos mais recentes o sugeriam. Impressionado pelo alarme que a entrevista provocou, reli-a com atenção e tive de visualizar a edição do Expresso da Meia-Noite para tentar compreender, apesar do gozo que o deputado da mala do Chega provocou esta semana, o impacto mediático do assunto. Não vou chegar ao ponto de afirmar que a entrevista ao Expresso de PNS seja irrelevante e que a construção mediática a partir do Expresso tenha suplantado a possível gravidade do tema. O meu ponto é que a entrevista necessita de ser analisada com mais rigor. A minha dúvida é que PNS talvez não tenha controlado bem o tom que imprimiu à entrevista e, em meu entender, os próximos dias serão decisivos para compreender se PNS tem ideias seguras sobre o assunto ou se, pior a emenda do que o soneto, irá meter os pés pelas mãos e embrulhar-se em indecisões que serão bem piores do que o impacto controverso da entrevista…).
Vou desvalorizar as reações posteriores de Ana Catarina Mendes ou de Eurico Brilhante Dias e concentrar-me nos três pontos que podem ser considerados mais controversos na entrevista de PNS ao Expresso. Os três pontos são os seguintes: (i) a posição crítica enunciada sobre o mecanismo da manifestação de interesse, entretanto abolido pelo atual Governo de Montenegro, sem mecanismo ou solução alternativa entretanto criada, (ii) a declaração forte de que o país não estava preparado para acolher uma magnitude tão elevada de população imigrada; (iii) a para mim, mais controversa ideia de invocação das questões culturais para enquadrar a já referida imigração.
Quanto à rejeição a posteriori do mecanismo da manifestação de interesse como porta de entrada da imigração, se quisermos ser rigorosos já António Vitorino, que é talvez no PS a personalidade com mais curriculum para poder falar de imigração, se tinha pronunciado negativamente sobre o referido mecanismo. A persistência desse mecanismo enquanto porta de entrada para a imigração tem de ser compreendida no contexto da trágica transição implicada pelo desaparecimento do SEF e sua substituição por uma também atribulada constituição da AIMA. Esta coexistência foi obviamente mal calculada por Ana Catarina Mendes e António Costa como principal responsável, por isso não me choca (só me choca o atraso com que PNS terá despertado para o assunto) que o líder do PS exprima pensamento crítico quanto à aplicação que o Governo de Costa realizou desse mecanismo. O que parece mais discutível é que uma afirmação desta natureza venha a público sem qualquer discussão no interior do partido e dos seus principais órgãos, chocando obviamente com membros do partido que são deputados no Parlamento e que todo o direito de se defenderem e procurarem contextualizar o entendimento que tiveram. Mas é para mim indiscutível que a ideia da desmontagem do SEF sem uma AIMA mais solidamente instalada. Não é difícil encontrar no segundo Governo de Costa outras matérias de avaliação errada do ponto de vista do contexto em que persistiram.
A entrevista é pouco clara quanto ao modelo que PNS propõe para remediar a situação de crítica da manifestação de interesse e de crítica simultânea ao modo como o atual Governo está a equacionar o problema. A referência ao visto turístico exige maior aprofundamento explicativo e confesso que é matéria que na entrevista considero estar mal trabalhada.
Esperemos as cenas dos próximos episódios.
A segunda ideia potencialmente controversa é a de que o país e as suas principais instituições (educação, SNS, políticas de habitação) não estavam preparados para responderem a uma magnitude tão elevada de população imigrada. Não é novidade alguma que as estruturas de planeamento andam em Portugal pelas ruas da amargura, facto provocado pela desvalorização clara e absoluta da ideia de planeamento que emergiu na sequência da glorificação do mercado como mecanismo de alocação de recursos. Não tenho dúvidas de que a própria preparação do Acordo de Parceria do PT 2030 não antecipou em toda a extensão das suas implicações o surto imigratório que se avizinhava. Os casos registados de presença inequívoca das máfias de recrutamento de mão de obra estrangeira e as suas implicações, com cumplicidade clara de empregadores, em situações mais ou menos escabrosas de alojamento indigno de populações imigradas eram avisos solenes de que o pior estava para acontecer. Vários testemunhos públicos, entre os quais o deste vosso Amigo em alguns trabalhos de avaliação de políticas públicas, alertaram para a necessidade de um corpo coerente de medidas entre atração, acolhimento e integração de migrantes. E não é verdade que, tal como PNS o sugere, as políticas de habitação do PS, posteriormente remendadas pelo governo de Costa, tenham antecipado o forte choque que a imigração iria provocar no já complicado problema de défice de habitações, com exceção dos grupos sociais mais abastados.
Esta segunda ideia de PNS não é em si controversa, interessa antes compreender o que é o PS de PNS propõe para preparar o país (relativamente e não com planeamento antecipado).
A terceira ideia é a que me provocou mais engulhos de leitura, principalmente porque acho que é uma ideia errada e incompatível com uma ideia progressista das relações entre povos. É indiscutível que a população imigrada tem de respeitar as leis do país que a acolhe e os princípios legais que resultam da Constituição portuguesa. Se alguém proveniente de outros cantos do mundo invoca o seu modelo cultural para praticar por exemplo coisas como a violência doméstica aberta ou a mutilação vaginal, teremos de ser firmes na condenação a aplicação abusiva do princípio do relativismo cultural.
Mas acreditar que o contacto entre sociedades e modelos culturais gerado pela interação e movimento de pessoas pode ser gerido apenas pelo princípio de que os imigrantes terão implacavelmente de se adaptar ao modelo cultural e valores da nação que as acolhe é de uma miopia de pensamento profundamente reacionária e contrária ao princípio de que a interação entre culturas é em si própria um fator de progresso e desenvolvimento das sociedades.
Esta é na minha perspetiva a dimensão da entrevista de PNS ao Expresso mais controversa e, em meu entender, incompatível com o progressismo que associo ao PS.
Assim sendo, resta-me recomendar que PNS possa ler uma obra recentemente publicada pela TEMAS E DEBATES, de autoria de um Professor de Harvard, Martin Puchner, designada de CULTURA – UMA NOVA HISTÓRIA DO MUNDO. Garanto-lhe que essa leitura será sem dúvida mais proveitosa do que ouvir o que os seus assessores de meia-tigela terão para lhe dizer sobre a matéria.
É um bom conselho e PROBONO.
sábado, 25 de janeiro de 2025
E COMO VAI A FRANÇA?
(A chegada de Trump ao poder ofuscou outras realidades seguidas neste blogue, algumas das quais não são menos importantes para o futuro da democracia no chamado mundo ocidental. É esse o caso do lio político em que a França está mergulhada. A pressuposta agilidade política de Macron ruiu como se de um baralho de cartas se tratasse. A esperada clarificação política que se esperava poder resultar da ida às urnas deu origem a um fracasso completo, que tem tudo para abrir caminho à chegada efetiva do Rassemblement National ao poder. Por sua vez, salvo coelho que salte milagrosamente da cartola, Macron agoniza num aparente corredor da morte política. Empertiga-se, por vezes, procura em sucessivos passes de mágica iludir as pessoas com a ideia de que controla o tempo político, mas só uma imaginação muito fértil consegue vislumbrar cenários de saída política que não passem pela abertura da porta da governação ao RN, ainda para mais num modelo possível de um Governo e de um Presidente, pois também não se vislumbra condições para um Presidente que reúna a esquerda ou de um Presidente que represente a barragem final à ascensão de Le Pen. O novo governo de Bayrouth aguarda paradoxalmente a confirmação da sua vulnerabilidade. À esquerda tudo como dantes. Mélenchon não desgruda do seu discurso impetuoso de sempre e não é homem de pontes, pois tende a dinamitá-las. O Partido Socialista pareceu poder recuperar com os resultados das últimas eleições, mas continua desaparecido, não diria em combate, mas de uma influência que se aproxime da que personalidades do passado como Rocard, Jospin e Hollande dos seus melhores tempos então exerceram. A pulverização de forças esquerdistas prossegue e os Verdes tardam em consolidar-se como força política capaz de impor “aggiornamentos” à esquerda com novos racionais …).
Este diagnóstico já é, por si só, suficientemente sombrio para justificar todas as preocupações. Mas, tal como gente da ciência política francesa o tem demonstrado com clareza, o impasse e desnorte das forças políticas está em profunda correlação com o que a sociedade francesa expressa.
A Sciences PO parisiense continua a explorar com sondagens permanentes o estado de alma da sociedade francesa e o que resulta dessa auscultação é a necessidade profunda da sociedade francesa se deitar no divã clínico e fazer análise, da mais competente que exista, se possível.
A sondagem resumida pelo diagrama que abre como imagem o post de hoje foi publicada no âmbito de uma crónica de Tony Barber no Financial Times e descreve-nos uma França particularmente desconfiada sobre o seu futuro e sobre a esperança a conceder à intervenção política, especialmente em comparação com países como a Alemanha, a Itália e a Polónia. E mostra-nos que a deriva política tem de ser compreendida no âmbito de algo mais vasto que fissura o capital social e a serenidade que está a minar a relação entre as forças políticas e a sociedade francesa. Variáveis como o nível de confiança, a serenidade, o nível de bem-estar e o medo apresentam em França valores desconcertantes, tanto mais estranhos quanto se sabe que o Estado social francês continua a manter comparativamente uma dimensão apreciável, não necessariamente extensiva a todos os segmentos da população.
A confiança dos franceses nas suas instituições políticas andava também pelas ruas da amargura (30% apenas confiavam nessas instituições pelas últimas sondagens disponíveis) e a confiança no Governo não era substancialmente mais elevada (34% apenas).
O que para um país em que o Estado social vai resistindo são valores de desconfiança que mostram que as instituições democráticas não estão a conseguir devolver aos cidadãos a confiança de outros tempos. É óbvio que as eras douradas dos anos 50 e início dos anos 60 são miragem do passado. Se pensarmos, porém, que aquilo que se passa em França não é substancialmente distinto do que se passa noutros países em que a extrema-direita se reforçou nos últimos tempos, temos aqui um bico de obra que dispensa recriminações mútuas e antes pactos alargados capazes de suster este plano inclinado.
Como se previa, 2025 anuncia-se como o ano das grandes decisões ou dos fracassos coletivos em democracia.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2025
O FESTIM
(Os primeiros dias da administração Trump fazem lembrar uma alcateia que goza deliciada uma presa acabada de ser apanhada, saciando apetites num festim celebração do que uma sua apoiante destacada designava de “a manhã americana”. Há ordens administrativas e decretos para todos os gostos dos membros da alcateia. Mas, pelo que vou lendo, abre-se também um outro festim, o dos escritórios de advogados e profissionais independentes que vão aproveitar até ao tutano o desplante arrogante do novo Presidente que em alguns domínios roça a ultrapassagem das suas competências legais, pelo que um longo rosário de litígios nos tribunais vai acontecer, representando por essa via um importante teste ao sistema judicial americano, no qual a instância superior do Supremo Tribunal tudo fará para não incomodar a nova Presidência. Como é fácil concluir pelo vastíssimo enunciado de ordens publicadas, e só a cena de Trump posar com os decretos e ordens assinados é por si só um verdadeiro espetáculo, não colocando eu de parte a possibilidade do Presidente os assinar em direto na televisão preferida, há promessas cumpridas para todos os gostos. E aí temos o festim da desregulação económica e ambiental, o seu agradecimento aos produtores de combustíveis fósseis, a desmontagem e despedimento de todos os serviços da administração federal que cheirem a progressismo e ativismo político, os perdões aos invasores do Capitólio, que é uma forma de se perdoar a si próprio, o não alinhamento com a tributação de 15% das firmas multinacionais e, obviamente, as deportações e outras formas de controlo mais ou menos violento da imigração ilegal…).
No que diz respeito à política económica, não é ainda totalmente claro se a fúria legislativa dos primeiros dias corresponde ao anunciado na campanha e nos dias que se sucederam à declaração de vitória. Sabemos que Trump gosta da palavra “tariffs” (direitos aduaneiros e não tarifas como a generalidade da imprensa e comentadores nacionais teimam em continuar a utilizar nas suas notícias) e que a principal novidade da sua invocação é a aplicação de fortes direitos aduaneiros ser utilizada como arma de castigo e chantagem sobre países cujo comportamento não agrada ao Presidente. O caso do México é o mais eloquente pois a ameaça corresponde ao objetivo de obrigar o governo mexicano a controlar o movimento migratório que aí tem origem e a domesticar a exportação de estupefacientes para os EUA. O caso do Canadá vem no mesmo pacote, embora, pasme-se, não consta em nenhuma fonte ou evidência que o Canadá seja origem nem de movimentos migratórios significativos, nem de proteção a perigosos narcotraficantes. A Europa aparece num saco contíguo, mas a linguagem é mais prosaica (“a Europa não gosta de nós e tem connosco um excedente comercial brutal”).
A utilização de direitos aduaneiros de forma generalizada e sobretudo entendida como arma de arremesso e de chantagem é praticamente de forma genérica considerada uma má prática por parte dos economistas, sobretudo se estivermos falar de taxas entre os 25% e valores mais elevados. A resolução das nossas questões à custa dos nossos parceiros comerciais (begging-my-neighbour) tende a ser considerada catastrófica para o comércio internacionais, gerando no país que as aplica pressões inflacionistas e complicando a vida aos mais pobres e desfavorecidos. A utilização seletiva e temporária de taxas aduaneiras pode ser entendida como um instrumento de política industrial, de maneira a permitir o “learning-by-doing” essencial dos primeiros tempos para a produção nacional, mas não é disso que Trump fala, mas de uma arma de chantagem e pressão.
Mas como fiel intérprete do ódio às elites (e os economistas estão nesse grupo), Trump estará a marimbar-se para o que a disciplina económica pensa. A única linguagem que ele entende é a dos mercados e, por vezes, os mercados reagem violentamente à imposição de direitos aduaneiros, antecipando os efeitos perversos que tendem a provocar. Ora, estranhamente, os mercados e a bolsa americana parecem deliciados com o festim a que esão a assistir (imagino que a desregulação generalizada seja o aspeto mais apreciado do manjar). Uma de duas, ou os mercados descontam já que a basófia trumpiana tem de ser devidamente desvalorizada, ou seja, a retórica política não vai chegar totalmente às taxas aduaneiras, ou então, pior dos cenários, a não reação dos mercados à política comercial das taxas aduaneiras ainda mais reforçará os apetites de Trump.
Paul Krugman, no seu novo posto de comentário, o seu substack, insiste num ponto relevante. O efeito perverso dos direitos aduaneiros não é proporcional à dimensão das taxas. Isto é, uma taxa de 30% sobre importações não gera três vezes mais efeitos perversos do que uma taxa de 10%. Os efeitos são mais que proporcionais. Um outro ponto importante é que as importações pesam apenas 11% no consumo médio americano, o que tenderá a reduzir o efeito-rendimento da aplicação de taxas às importações.
Outros efeitos tenderão a fazer sujeitar a retórica de Trump ao confronto com factos que lhe serão adversos. A criação de empregos que é prometida com a aplicação das taxas aduaneiras dificilmente poderá ser cumprida. A proximidade da economia americana ao pleno emprego é uma realidade e isso obviamente que condiciona o objetivo da criação de emprego anunciada, a não ser que a imigração o compense (mas esta é fustigada pela mesma retórica de Trump), mas isso é um contrassenso. Depois, a tendência para os direitos aduaneiros sobre as importações influenciarem a sobrevalorização do dólar é real, com consequências penalizadoras para as exportações americanas.
Por fim, a hipótese de retaliações tenderá a provocar sérios efeitos na indústria americana que mantém já com as economias mexicana e canadiana uma forte interdependência.
Concluindo, a confusão e o confronto da retórica trumpiana seguem dentro de momentos ou em próximos episódios …
quinta-feira, 23 de janeiro de 2025
MAS O QUE ACONTECEU AFINAL EM GAZA?
(Já quando redigi o post sobre a devastação em Gaza me coloquei o problema de encontrar a designação rigorosa para descrever o que aconteceu em Gaza com a desproporcionadíssima e oportunista invasão que Israel perpetrou naquele território. Em bom rigor não se tratou de uma guerra propriamente dita embora falar de tréguas o possa sugerir. Tratou-se antes de uma retaliação concretizada sob o pressuposto falso de que condenar a população palestiniana a um genocídio parcial seria equivalente a condenar o Hamas à sua extinção. Hoje compreende-se melhor as consequências desse trágico pressuposto. Embora debilitado, o Hamas não foi destruído e o que não suscita dúvidas é a dimensão do morticínio a que a população de Gaza foi submetida. Assim sendo, fui procurando entre o que a ciência política nos tem oferecido elementos para descrever com maior rigor o que afinal aconteceu em Gaza. Como já por repetidas vezes o invoquei, Xosé Luís Barreiro Rivas é um desconcertante politólogo galego, profundamente conservador nas suas posições, feroz opositor do modelo de governação política que Pedro Sánchez tem protagonizado para assegurar a sua continuidade no poder e adiar eleições que muito provavelmente perderá, por conseguinte, nenhum perigoso esquerdista com fortes preconceitos em relação a Israel. Ora, na sua última crónica na VOZ DE GALICIA, Barreiro Rivas responde parcialmente à minha interrogação, partindo da análise do que aconteceu em Gaza e da conclusão de que não o podemos descrever como uma guerra. Já é um começo. De mal o menos …).
Citando parte da sua crónica, Barreiro Rivas diz-nos o seguinte:
“O que aconteceu, afinal em Gaza? É possível que os que falam inglês não tenham palavras para o descrever. Mas nós que falamos castelhano temos dois termos – aceifa e razia de origem árabe que, muito utilizados durante a Reconquista, nos explicam que nenhum dos adversários tem capacidade para levar a cabo uma guerra, ou quando o inimigo é difuso, o que os exércitos e os aventureiros fazem é uma “aceifa”, que serve para destruir as bases de um poder nascente, ou debilitar estruturas políticas emergentes, queimando colheitas e habitações, realizando grandes matanças e cativeiros e arrasando os símbolos de identidade. Não permanecem na terra arrasada, porque não a podem defender, mas tão pouco a deixam crescer ou organizar-se”.
A questão de ser ou não ser uma guerra tem fortes implicações no modo como a diplomacia e a política poderão atuar. Como diz o cronista, “uma guerra que não começou dificilmente pode ser acabada”. Temo que esta questão, muito mais profunda do que uma simples preocupação de terminologia, tenha fortes repercussões na continuação das tréguas em curso e na sua possível extensão para um arremedo de paz, precária bem entendido, mas pelo menos suficientemente duradoura para que a ajuda humanitária possa atuar sem pressões e em segurança e possa ser minimamente iniciada uma primeira fase de reconstrução infraestrutural, permitindo que a devastação não se repercuta em graves problemas de saúde pública.
O problema de representação da população palestiniana é um caso bicudo. No contexto atual, a separação entre o Hamas político e o Hamas militar é praticamente impossível e a Autoridade Nacional da Palestina vive momentos de grande enfraquecimento devido às diferentes frentes de corrupção em que se deixou envolver. Todos estes factos penalizam a negociação e a possibilidade da população palestiniana surgir representada de forma coerente.
E há ainda o problema da intermediação política do próprio processo de negociação. O Quatar e o Egito foram atores importantes na difícil construção das tréguas que têm permitido a troca bem-sucedida entre reféns do Hamas e presos palestinianos, mas é questionável que esses dois países possam prolongar a sua ação negociadora para as difíceis condições da reconstrução e da governação do território de Gaza.
Como é conhecido, Israel extremou incompreensivelmente a sua animosidade contra as Nações Unidas e não antevejo céu limpo para uma baixa de tensão nesse relacionamento. E já não estou a projetar as consequências de por parte dos EUA não estar um Anthony Blinken ou perfil similar nessas negociações e estar antes representado por um qualquer acólito trauglaudita de Trump.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2025
REFOCANDO NA UCRÂNIA?
Ao que parece, o novo responsável pela diplomacia americana (Mark Rubio) terá sido instado pelo presidente a dar prioridade ao dossiê ucraniano, o que se não deixa de saudar.
Por um lado, porque a evolução da guerra no terreno não dá sinais específicos apontando para um qualquer fim, quase três anos volvidos (vejam-se os mapas acima, ilustrativos de avanços relativamente diminutos das tropas russas e de algum retrocesso no controlo ucraniano de território russo, no oblast de Kursk).
Por outro lado, porque a situação em presença ganha generalizadas razões de incomodidade para todas as partes, determinando uma “fadiga” e alguma desorientação estratégica que são cada vez mais visíveis em Zelenky e nas capitais europeias e que, na Rússia, são acompanhadas por manifestações autoritárias de disfarce sobre as dificuldades económicas, políticas e militares que por lá se vivem – não tratando hoje aqui de algumas das mais relevantes de entre aquelas, saliento a dimensão “perdas humanas”, onde já são mais de 800 mil os combatentes russos mortos ou feridos desde o início da guerra (gráfico abaixo); com o recurso a tropas norte-coreanas (12 mil homens enviados em outubro passado para ajuda na defesa e eventual contraofensiva em Kursk) a ser acompanhado por baixas muito significativas (cerca de 92 por dia) e a tornar previsível que, ao mesmo ritmo, aquele contingente liminarmente tenda a esgotar-se até abril próximo.
Atentemos nos próximos passos, sendo que Zelensky lá vai fazendo das tripas coração junto de Trump (que adora ser bajulado!) e que Putin já terá irritado Trump por via da sua fala telefónica dita preferencial com Xi. Dadas as idiossincrasias dos protagonistas, profundamente egocêntricos e imprevisíveis, mais previsões só no fim do jogo...
terça-feira, 21 de janeiro de 2025
DESIGUALDADE NA DEVASTAÇÃO
(Ninguém nega que a agressão brutal do Hamas no sul de Israel ajudou a desencadear a desproporcionada e mais do que brutal agressão israelita ao território de Gaza e os despudorados ataques ao território da Cijordânia com o objetivo de alargar a presença dos colonatos israelitas. Ninguém também ignora o horror sentido pela população israelita naquela noite e o sofrimento que tal operação provocou nas populações que foram objeto dessa selvajaria. Assumido esse pressuposto de que o atentado do Hamas terá sido perpetrado e concebido com grande preparação, tirando partido de quebras de segurança óbvias do lado israelita, ninguém que se considere uma pessoa decente e com sentido de justiça pode fechar os olhos à devastação cruel, ao genocídio declarado da população Palestina que a invasão do território de Gaza perpetrou, sem qualquer respeito pela existência daquele Povo martirizado e também pela comunidade internacional. Há dias, um pouco antes do início das tréguas no conflito, tão frágeis que designá-lo de acordo de paz é extremamente bondoso, apesar da alegria incontida da população que restou em Gaza, dei de caras com uns números que comparavam os mortos do lado de Israel com os do lado palestiniano. Sem citar aqui os números rigorosos eles apontavam para a escala dos mil do lado israelita e mais de quarenta mil do lado palestiniano. Ou seja, uma relação de 1 para 40, aproximadamente. Dei comigo a pensar nessa desproporção e daí a referida devastação na desigualdade …)
A relação atrás referida mostra que, objetivamente, foi necessário mais de 40 vezes o número de mortes de palestinianos relativamente aos vividos por Israel para gerar a ocorrência de tréguas e criar condições para uma ajuda humanitária de curto prazo. Esta desigualdade é brutal e imoral, mostrando que o valor da morte de um israelita e de um palestiniano não é o mesmo, contrariando o princípio da decência humana.
Aliás, quem olhar com atenção para a devastação quase total do território de Gaza rapidamente conclui que provavelmente o número de perdas palestinianas estará estimado por defeito, tamanha é a destruição que as imagens disponíveis nos mostram de forma cruel. Porém, não é totalmente claro que, embora decapitado nas suas principais chefias, o Hamas tenha sido aniquilado como as forças israelitas pretendiam. E perante a brutalidade e violência da invasão israelita, é bem provável que novos militantes estejam em formação, transformando o conflito em algo que não terá fim definitivo.
A destruição do território de Gaza e as consequências da guerra sobre o da Cijordânia, ainda ontem, já com as populações a festejar em Gaza, um atentado israelita matava mais um conjunto de pessoas nesse território, sabe-se lá com que argumento, vêm atribuir à tese dos dois Estados um significado algo macabro. Não é difícil imaginar o período bastante longo que será necessário para reconstituir em Gaza algo que se assemelhe a um território com condições de vida e a consolidação em extensão dos colonatos israelitas de todo ilegal face aos acordos existentes coloca um problema adicional, atiçando o conflito.
Abre-se, assim, um longo interregno até que seja credível a diplomacia regressar ao tema dos dois Estados e nesse interregno o elefante na sala que Trump representa vai introduzir no processo ainda mais instabilidade. Tendo em conta que a posição europeia na condenação do genocídio perpetrado sobre a população palestiniana deixou bastante a desejar, com os alemães a espiar culpas do passado, abre-se um período terrível para a população palestiniana que não terá do lado ocidental uma defesa moralmente decente.
Até que as tais condições mínimas de vida possam ser recuperadas, mesmo numa estimativa bondosa de que as tréguas se transformarão em acordo de paz, a tese dos dois Estados será conversa mole e de reduzido interesse imediato para a população palestiniana.
Mas quem organizará e poderá liderar a reconstrução?
Aceitará Israel o regresso da ONU a um papel mais ativo nesse processo?
BELOS MOMENTOS NO GRANDE ECRÃ
Sobretudo para a gente da minha geração, habituada ao longo de décadas a fruir de bom cinema em sala própria, o mix da preguiça associada ao avançar da idade e da facilidade de acesso às plataformas de streaming (Netflix, Max, Apple TV, Amazon Prime, Disney+, Filmin, etc.) é altamente perverso ao potenciar a variedade de produtos, a comodidade das horas e a permanência no sofá sem grande perda efetiva de acesso a grandes filmes ou séries.
No que me toca, cá vou procurando resistir como posso a tais apelos e tentando deslocar-me às salas que ainda existem na Cidade (ou nas suas redondezas, especialmente em centros comerciais) e assim manter minimamente atualizada uma certa dose de informação e conhecimento sobre as novidades em estreia. O último fim de semana foi um dos que me permitiram que aproveitasse algum tempo disponível para tal e o respetivo saldo foi bem positivo, consubstanciado na presença em dois espetáculos: (i) o último trabalho realizado por Walter Salles (“Ainda Estou Aqui”), bastante badalado pelo merecido “Globo de Ouro” obtido por Fernanda Torres e nomeado para o “Óscar do Melhor Filme Estrangeiro”, que é um filme sério e notável a vários títulos, desde a sua filiação histórica adaptada à ficção por Marcelo Rubens Paiva às excelentes interpretações dos protagonistas (incluindo os jovens filhos do casal Paiva) ou às suas magníficas incursões pela zona sul do Rio de Janeiro ou pelos detalhes da vivência daquele início dos anos 70 (tão próximos dos que se registavam entre nós); (ii) o documentário biográfico, inconcebivelmente traduzido cá no Retângulo como “A Cantiga é uma Arma” a partir do original “I am a Noise”, sobre a mítica cantora norte-americana Joan Baez (agora já com 84 anos), percorrendo as principais fases da sua vida e carreira de um modo profundamente sincero e honesto que não omite algumas situações de natureza mais íntima e por vezes surpreendente (como a relação com Bob Dylan, que não sai especialmente bem-visto do relato, as cíclicas perturbações de disposição e ânimo da artista, a importância do seu compromisso com a justiça e a igualdade ou a sua difusa revisitação de uma infância que começa por ser tratada como normal e até feliz), ao que se acrescentam os excertos de canções icónicas ou simplesmente já guardadas no baú das memórias.
Finalmente: tendo confirmado pela enésima vez que a visualização em sala e grande ecrã tem outro encanto e que não devemos perder o que as empresas de exibição filmográfica ainda nos vão oferecendo de distintivo, aqui quero deixar assinalada a minha viva recomendação das duas obras atrás mencionadas.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2025
E SE OS CHECK AND BALANCES NÃO FUNCIONAREM PORQUE AS PESSOAS NÃO OS VALORIZAM?
(Estou claramente deprimido com a situação internacional e, por isso, tenho feito das tripas coração para conseguir dar uma olhada às televisões e sentir o pulso ao comentário político mais representativo sobre o que ele pensa da deriva da sociedade americana que a eleição de Trump representa. A reação dominante à investida de Trump é curiosa e tudo se passa como se toda a gente tivesse virado diplomata, usando uma linguagem do tipo que é necessário não destruir os laços entre Portugal e os Estados Unidos, caso de Ventura, por exemplo, que é necessário esperar para ver, que o ego imenso e patológico de Trump fá-lo prometer mais do que irá na prática fazer e outras interpretações do género, procurando convencerem-se a si próprios de “que não vai passar nada”. Outros, por sua vez, libertam-se desinibidos e convencem-se que vai negociar tudo, prometendo benesses a quem seguir as suas propostas e combater duramente os que invoquem outros valores que não o do vil metal, bitcoins, e assim resolver problemas considerados complexos. Outros ainda, de pensamento mais elaborado, continuam otimisticamente a acreditar que os diversos checks and balances da sociedade americana serão capazes de suster as megalomanias narcísicas de Trump, ainda que reconhecendo que o domínio de Trump é avassalador, Congresso, Senado, Supremo Tribunal de Justiça, número de Estados em que ganhou e não ignorando ainda a mais que provável sanha persecutória de que as instituições mais progressistas vão ser alvo. É sobre esta questão dos checks and balances que gostaria hoje de refletir, a partir não de uma perspetiva institucional, mas antes a partir do princípio de que para funcionarem em toda a medida do seu potencial será necessário que haja população a reconhecer e a reclamar a sua importância. E aí começam as minhas dúvidas …)
Seguindo na esteira da intuição de Noah Smith, pode perguntar-se se a eleição de Trump se deve ao reaparecimento na sociedade americana de um outro modo de vida mais conservador ou se, pelo contrário, é por agora a expressão de uma rejeição, por vezes ríspida, do progressismo em todas as suas dimensões – cultural, estilo de vida, costumes e valores. Enquanto expressão de rejeição das elites e do seu confortável e desprendido way of life, o movimento global que levou Trump ao poder não é substancialmente distinto do populismo mais rançoso que tem prosperado também na Europa. Por agora, e nada impede que daqui a algum tempo tenhamos de corrigir a perspetiva, o que se vai manifestando e sustentando a ascensão de Trump é mais a rejeição do progressismo nas suas diferentes expressões do que propriamente o regresso a modos de vida mais conservadores.
Uma evidência que aponta para esta interpretação é a queda abrupta da influência da religião entre os americanos. Uma sondagem da GALLUP mostra que pertencer como membro a uma igreja abrange hoje menos de 50% dos adultos americanos (47%), quando essa percentagem atingiu no passado mais de 70%, com relevo para os anos 40. Sabemos que as convicções religiosas faziam parte intrinsecamente do modo de vida conservador de grande parte das famílias americanas. A não ser que consideremos a dependência das redes sociais uma nova forma, estranha, de religiosidade, não será pela religião que o conservadorismo de raízes antigas estará a instalar-se de novo na sociedade americana.
Uma outra evidência bastante ilustrativa do que vai grassando na sociedade americana é a evolução significativa de opinião que vai sendo registada em temas fraturantes de hoje, como é o caso da imigração considerada ilegal e de variantes em torno do tema.
A imagem que abre este post e que fornece algumas percentagens de opinião pública registada em sondagem do New York Times é, por si só esclarecedora: (i) 87% dos americanos apoia a deportação de imigrantes ilegais e com registos de criminalidade; (ii) 63% apoia a deportação de imigrantes ilegais chegados nos últimos 4 anos; (iii) 55% apoia a deportação de todos os imigrantes em situação ilegal; (iv) 41% rejeita a concessão de cidadania americana a filhos de imigrantes em situação ilegal; (v) 34% aceita o fim da proteção a imigrantes que eram crianças quando entraram ilegalmente no país. Não é difícil antecipar que a anunciada deportação em massa de imigrantes anunciada para o início da governação, com todos os atropelos que a medida implicará, não terá o eco de reprovação que admitimos ir acontecer.
A mesma sondagem revelou também uma generalizada reação ao movimento trans, neste caso não deixando de fora os próprios eleitores democratas. Duas simples percentagens ilustram o que pretendemos dizer: por um lado, 77% da população americana sustenta que se foi longe de mais na acomodação da população trans, subindo essa percentagem para 93% entre os Republicanos e, mesmo assim, 62% da população Democrata também o considera; por outro lado, 71% da população americana não aprova a utilização por menores das substâncias clínicas designadas de bloqueadores da puberdade. No mesmo sentido, poderíamos falar da translação da população hispânica e asiática nos EUA para o voto em Trump.
Tecnocratas digitais multimilionários e os mais ricos financiadores do movimento MAGA que se inscreve numa outra ordem de razões, assistem de cadeirinha e batendo palmas a esta rejeição de diferentes formas do progressismo, não estando agora em causa, essa é uma outra discussão, se as formas que esse progressismo tem revestido são ou não as mais adequadas.
Não sabemos se estará em formação uma nova forma de conservadorismo, indo além do que poderá ser entendida como uma rejeição do progressismo mais esquerdista. Certamente que os Democratas estarão a pensar nisso e, por isso, a moderação e o centrismo Democratas poderão ter uma palavra a dizer e quem sou eu para os contrariar.
Mas o ponto onde queria chegar era que o fenómeno dos checks and balances pode perder relevância se uma crescente massa de eleitores deles não necessitar ou não os valorizar. Nesse caso, eles tenderão a transformar-se em focos e capital de resistência para os que continuam a acreditar em valores mais progressivos. E não direi isso a pensar na elite mais abastada. Essa continuará nos seus núcleos isolados e autossuficientes, no seu próprio mundo. Estou antes a pensar nos militantes de base de todo o movimento associativo e cívico que não vende facilmente a alma ao diabo e que continuará a lutar pelos seus valores. A grande interrogação consiste em saber se no sistema judicial americano haverá ainda espaço e alma para proteger a defesa desses direitos, incluindo aqui também os ambientais, que serão sujeitos nos próximos tempos a uma onda desenfreada de desregulação.
Estou em crer que as cenas dos próximos capítulos serão inquietantes.
INAUGURATION DAY
As datas agendadas acabam sempre por chegar a concretização e, quando assim não acontece, algo está mal e não é grande sinal... Ora aí temos o 20 de janeiro de 2025, que irá assistir daqui a pouco à posse de Donald Trump num Capitólio repleto de extremistas de direita vindos de todos os lados do mundo para consagrarem o início de uma “nova era” que reputam de verdadeiramente esperançosa para as suas reacionárias, nacionalistas e implacáveis hostes.
Bem a propósito, quero aqui recordar aos nossos leitores a oportunidade de seguirem nesta data a recomendação de leitura que lhes fiz num post de 4 de outubro de 2023 (“Caminhos de Desintegração”) significativamente centrado numa obra original e premonitória de Peter Turchin (“End Times”) que aborda arrepiantemente matérias vastas em torno da história e da realidade política americana e convergindo numa das suas bases argumentativas com a ideia a que aludiu Biden no seu discurso de despedida de os EUA estarem em risco de serem tomados pelos avanços de uma oligarquia – o que surge evidenciado pelo modo como toda uma casta de multimilionários e empresários das áreas tecnológicas se foi encostando a Trump e dando apoio às suas diatribes e provocações, com Elon Musk a ser o campeão desse inconcebível projeto de poder infestado de conflitos de interesses (“Musk e Silicon Valley chegam a Washington”, titula o “Público” de hoje).
Os menos pessimistas persistem em sublinhar os checks and balances que, independentemente da concentração de poderes para o lado de Trump, caraterizam e defendem uma democracia sólida e estabilizada como a americana, assim desvalorizando os riscos de excessos demasiado graves e conducentes a uma qualquer mudança de regime. Mas a verdade mais realista é a de que o contexto favorece os autoritarismos e os abusos, seja porque a sociedade americana se vai mostrando alinhada com muitas das tresloucadas promessas de Trump (onde as questões migratórias e climáticas são especialmente melindrosas), seja porque a política à escala mundial se vai mostrando crescentemente orientada para radicalismos inflexíveis em relação a valores de solidariedade e humanidade, seja porque os caminhos geoestratégicos se vão mostrando cada vez menos compatíveis com práticas assentes na ordem e sã convivência dos povos. Num quadro desta natureza, nenhum receio de derrapagem perigosa pode ser visto como infundado ou improvável – moral da história: que o Senhor nos proteja!
domingo, 19 de janeiro de 2025
O ÚLTIMO DIA DE BIDEN
Já era minha intenção dedicar o post de hoje à despedida presidencial de Joe Biden. Mas a realidade é que o que seria o essencial do meu argumentário surgiu tomado, com clara vantagem, pela magnífica crónica de Teresa de Souza (TS) no “Público” deste Domingo. Por tal razão, e porque o texto de TS não deixa de me parecer, ainda assim, excessivamente laudatório em relação a um mandato bastante positivo (Bidenomics, política externa e reposição de normalidade quanto ao lugar dos EUA no mundo, entre muitas outras vertentes relevantes e sendo que talvez seja correta a sensação de que “o seu legado é menor do que a soma de cada uma das partes” e de que a imagem de um “Presidente transformador” poderá ceder para a posteridade à de quatro anos que se saldaram por “um interregno entre dois mandatos de Trump”), limito-me aqui a um breve apontamento sobre as dimensões suscetíveis de serem consideradas mais polémicas da prestação de Biden.
Seleciono como mais elucidativos três tópicos principais: a retirada caótica do Afeganistão em início de mandato, a descuidada gestão política de como foi preparada uma eventual continuidade dos Democratas na Casa Branca e o perdão presidencial concedido ao filho Hunter em processos judiciais. O primeiro constituiu-se, objetivamente, numa falha que terá de ser assacada à vontade de sinalizar, sem apelo nem agravo, um caminho de mudança de política internacional que parecia assumido e consensualizado mas omitia ou desvalorizava dimensões importantes que não deviam tê-lo sido. O segundo ficou à vista na candidatura apressada de Kamala Harris (após o debate desastrado de Biden contra Trump), uma vice-presidente que teria tido em quatro anos de exercício todas as condições para ser projetada calma e seguramente não fora a contracorrente da entourage do presidente. Já o terceiro é mais discutível, na medida em que coloca nos pratos da balança o respeito inexorável pelos princípios contra a certeza de um adversário que subsequentemente iria proceder a práticas de vingança cirurgicamente dirigidas, um dilema que me faz considerar aceitável que Biden possa ter atuado com uma espécie de razoabilidade salomónica que a análise concreta da situação concreta lhe determinava.
A partir de hoje, Biden passa a ser uma página virada da vida política americana. Nela escreveu maioritariamente com letras de ouro, vistos o patriotismo e a dignidade com que desempenhou a sua função e a credibilidade reputacional que recuperou para o seu país. Um julgamento que me surge como incontroverso mas que terá necessariamente de ficar sujeito ao julgamento final da História.