(Nas condições atuais de desestruturação da economia mundial, nunca foi tão importante como hoje compreender a evolução e o atual estado da arte do modelo de crescimento económico chinês. Pode ser uma tarefa difícil compreender de fora esse modelo, mas uma coisa sabemos. As decisões quanto ao modelo económico não são lá seguramente tomadas com a leviandade e ligeireza com que a administração Trump as toma diariamente, confundindo patologicamente evidência com invenção, aliás como cabalmente o demonstrou perante o mundo a sua incrível prestação na Assembleia Geral das Nações Unidas. Por isso, reunir conhecimento sobre as vicissitudes que o modelo chinês hoje enfrenta constitui uma sábia maneira de compreender os rumos da economia mundial. Tudo isto vem a propósito de uma notável entrevista no ECONOMICS SHOW do Financial Times de Martin Sandbu a Michael Pettis, economista, residente na China desde 2001 e professor na Universidade de Pequim, um conhecedor profundo do modelo chinês, com sólida formação em economia e um amplo conhecimento dos meandros da economia mundial em diferentes épocas históricas. Podem ler a transcrição rigorosa da entrevista aqui, mas se preferirem a versão áudio poderão também ouvi-la aqui. A entrevista é sobretudo relevante porque nos fornece um enquadramento sólido e rigoroso da evolução da economia chinesa. E o que é curioso é que, sendo Pettis alguém com grande experiência internacional e ter dedicado alguns anos da sua vida ao modelo latino americano, ele reconhece a especificidade do modelo chinês, embora refira que o conhecimento aprofundado dos mecanismos de crescimento das economias em vias de desenvolvimento o ajudou bastante a construir a sua própria visão do modelo chinês. Música celestial para os ouvidos de alguém como eu que nunca esqueceu o legado da economia do desenvolvimento e sempre que pode o aplica com gosto e vantagem. Resta dizer que a qualidade do jornalista Martin Sandbu entra positivamente na equação, tornando a entrevista um notável exemplo pedagógico de compreensão da economia mundial de hoje.)
A principal razão para no início da década de 2000, a China se ter transformado num país poderoso em termos de poupança disponível para investimento está no facto de durante as décadas de 90 e posteriores ter crescido em termos médios a taxas anuais de 10 e 11% e, simultaneamente, o rendimento das famílias ter evoluído a taxas entre 6 e 7%. Em apenas 15 a 20 anos (uma concentração temporal espantosa), a máquina de investimento proporcionada pelas condições de poupança e o elevado contributo dinâmico dos governos locais passou por três fases – a da infraestrutura, largamente potenciada pela pobreza do país e o estado péssimo da sua dotação infraestrutural, a da habitação-imobiliário largamente associada à explosão urbana e, finalmente, a da indústria transformadora e nos tempos mais recentes na espantosa evolução nas tecnologias verdes e elétricas.
Todo este esforço sem precedentes históricos de investimento gerou um fenómeno alargado de excesso de capacidade, primeiro de infraestruturas que os aumentos possíveis de produtividade não conseguiam absorver, depois sob a forma de uma bolha imobiliária e, atualmente, com uma capacidade de exportação de manufaturados e tecnologia que suscita problemas de absorção a nível mundial.
O modelo chinês deste período gerou um problema conhecido de avanço tecnológico e de crescimento da produtividade que, ou se transmite a um enriquecimento de trabalhadores e com isso a um aumento significativo do consumo e tende a endogeneizar na economia os benefícios, ou tenderá a reverter para o exterior através dos países que importarão essa tecnologia.
Mas a parte da entrevista que mais me seduziu é a invocação que Pettis realiza do conceito de “beggar my neighbour” (à custa do vizinho ou parceiro comercial) que Joan Robinson cunhou com a perspicácia que lhe era própria. A manutenção de excedentes comerciais permanentes, designadamente através de um impulso fortemente subsidiado da indústria transformadora (atualmente indústrias verdes e elétricas) tende a aumentar o peso da China na oferta mundial de produtos dessa natureza, com a inevitável formação de países deficitários nessa matéria, o que mais tarde ou cedo significa conflitualidade comercial que, regra geral, não fica por aí. Esse é o drama da economia americana.
Ora, uma coisa é a poupança chinesa servir para acomodar o défice de poupança americano, outra coisa bem diferente é a China poupar mais, ter excedentes comerciais e comprar ativos americanos para o compensar. Mas mesmo no primeiro caso não é líquido que o contributo da poupança chinesa seja utilizado nos EUA como meio de investimento produtivo.
A estrutura da economia mundial é assim marcada por um conjunto permanente de países comercialmente excedentários e de países deficitários. O problema não está na existência de excedentes e de défices, mas sim na sua permanência sem qualquer rotação. A rigidez temporal desta divisão tem obviamente consequências estruturais. Por exemplo, nos EUA é clara a transferência da indústria transformadora para os serviços, incluindo os globalizados, nos quais a economia americana é líder. Essa transferência tem em parte que ver com a evolução tecnológica e com o aumento de produtividade da economia americana. Mas há uma dimensão que está inevitavelmente relacionada com a deslocalização de indústrias para outros países. Na China, pelo contrário, o peso da indústria transformadora tende a ser superior à média mundial para níveis similares de desenvolvimento económico.
Tal como Keynes magistralmente o antecipou discutindo a situação mundial do pós-Segunda Guerra Mundial, a existência de excedentes permanentes coloca problemas de balanceamento mundial e exige um movimento de regulação. A via dos direitos aduaneiros escolhida por Trump constitui o lado errado da solução e tende a agravar a conflitualidade. Existe, por conseguinte, um problema de governação e regulação mundial que só numa lógica multilateral é possível construir, ao contrário do que Trump pensa, que optou pela unilateralidade e pelo “bullying” comercial. A consequência mais natural será o aumento do desemprego industrial nos EUA, que irá contrariar as parangonas do seu discurso político.
Alguns economistas como Noah Smith têm vindo a reconhecer que a China através da sua aposta verde e elétrica e do embaratecimento dessas tecnologias, designadamente nas suas exportações para as economias em desenvolvimento, está hoje a compensar a sua forte influência na emissão de gases com efeito de estufa. Esta dimensão é crucial porque permite a esses países crescer sem a geração de danos ambientais que os países que os antecederam tendiam a provocar com outras tecnologias. É um dado positivo, mas não permite ignorar que a permanência de excedentes comerciais externos é um fator de perturbação e conflitualidade no comércio mundial.
Estou convicto de que seria sempre melhor envolver a China numa negociação séria para o rebalanceamento dos desvios comerciais externos do que a obrigar a entrar no domínio da guerra comercial. Por este e por outros motivos, a administração americana é hoje uma ameaça à paz mundial, não apenas Putin o é. E talvez por isso o presidente americano é tão bobo e complacente com o ditador russo.



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