terça-feira, 23 de setembro de 2025

A GUERRA CULTURAL CONTRA A EUROPA

 


(Falar de guerra cultural em tempos de sofrimento de ucranianos e palestinos, entre outros povos, por força de guerras físicas propriamente ditas, ferozes e desumanas, parece invenção de uma elite que parece não ter mais nada que fazer. Mas ao contrário do que pode parecer aos mais desatentos, na perspetiva da Europa é fundamental falar dessa guerra cultural que tem sido dirigida aos valores que continuam a ser dominantes entre nós. E trata-se de uma guerra cultural que não tem o seu epicentro a leste, mas que é comandada, pasmem-se os mais desatentos, a partir do interior do próprio ocidente, mais propriamente dos EUA de Trump e seus apaniguados. A história tem destas ironias mais ou menos macabras. Em tempos idos, a desconfiança com o modelo americano foi sempre um fator de clivagem não só entre a esquerda e a direita europeias, mas também no interior da própria esquerda, com enormes feridas e fraturas face a esse modelo americano. Ora entendido como o paradigma da liberdade e da capacidade do livre empreendimento, ora assinalado como um imperialismo cruel, o modelo cultural europeu sempre se debateu com esta clivagem, pairando sempre sobre a relação transatlântica essa nuvem. Nos tempos que correm, tudo isso está feito em cacos. Da América do Norte de Trump levanta-se uma guerra cultural sem tréguas, que combina duas coisas. Por um lado, o movimento MAGA e seus aríetes mais radicais promove descaradamente a emergência de forças políticas de extrema-direita, multiplicando os cavalos de Troia de ameaça ao modelo europeu. Por outro lado, a América de Trump explora até à exaustão a fragmentação europeia, humilhando-a sempre que pode e procurando identificar a ideia de ocidente com os EUA, ou seja, minando a dignidade, a credibilidade e a identidade europeias na cena internacional.)

Para a América do MAGA, o modelo europeu é visto como Trump vê os “liberais esquerdistas” americanos. É preciso suprimi-los por diferentes vias, incluindo o grande apelo a Deus e à religião que o assassínio de Charlie Kirk tem proporcionado como movimento de massas, instrumentalizando tudo o que estiver à mão, incluindo o seu funeral.

Esta perspetiva de guerra cultural começou a emergir com clareza quando o vice-Presidente J.D. Vance visitou a Europa (o discurso em Munique ficará como evidência histórica de uma agressão cultural) de forma ameaçadora e arrogante, proclamando que os Europeus cerceavam a liberdade de pensamento. O que Vance queria dizer é que a vigilância e repressão, se necessária, da extrema-direita extremista e radical era para ele e para Trump uma forma de ataque à liberdade de pensamento. O princípio é exatamente o mesmo que inspira as delações aos universitários mais progressistas, a caça ao homem dos imigrantes ou o silenciamento dos que ousam criticar a administração americana atual que se multiplicam no dia a dia das instituições e dos cidadãos americanos.

O que importa realçar é que a guerra cultural de que falamos combina as duas dimensões atrás referidas, incentivando os cavalos de Troia já existentes a crescer e a rebelar-se contra a democracia liberal e explorando a divisão entre os 27 de modo a esbater a sua possível influência no mundo (com indisfarçáveis agentes internos, com Mark Rutte da NATO à frente de todos).

A situação é tão crítica porque a Europa, além de se confrontar com estas duas ameaças, passa o tempo a reagir contra as sucessivas crises que Trump e os seus aliados europeus continuam a fazer proliferar, consumindo recursos e tempo para arrumar a casa e tirar partido da sobrevivência dos valores europeus que os barómetros de opinião continuam a revelar como efetiva.

A guerra cultural consiste, assim, em erradicar deliberadamente os valores europeus consolidados no pós - Segunda Guerra mundial e substituí-los por uma truncada versão do livre pensamento e uma descarada regressão social ao nível dos comportamentos e valores. Esta ofensiva tem poderosos instrumentos – dinheiro a rodos para financiar as atividades, ativistas e a expressão pública das forças de extrema-direita (com Musk à cabeça) e redes sociais pujantes para dominar a esfera digital europeia (daí a persistente oposição americana à regulação destas redes).

A situação vivida pelos Europeus é, assim, trágica. Por um lado, tem de acudir e marcar posição em conflitos como a invasão da Ucrânia e a violência de Israel sobre Gaza e a Cijordânia. Por outro lado, é atingida por uma guerra cultural sem tréguas e sem precedentes.

Trágica, mas não desesperada e sem soluções.

Convoco para esta reflexão dois contributos importantes, que mostram existir pensamento e fundamento para a resistência e dar a volta.

O primeiro tem origem no European Council on Foreign Relations e num policy brief de Pawel Zerka que, além de dissertar sobre esta ameaça de guerra cultural, trabalha o indicador Sentimento Europeu com valores de 2025. Não tenho tempo nem espaço para explorar todas as incidências deste indicador, mas fiquem pelo menos com a conclusão de que a confiança dos cidadãos europeus na União Europeia está hoje no seu nível máximo desde 2007.

O segundo é proporcionado por uma grande entrevista de Enrico Letta à McKinsey, antigo primeiro-ministro italiano e autor de um dos relatórios mais importantes sobre a União dos últimos tempos – o relatório sobre a mercado interno europeu e sobre a necessidade de o completar, sobretudo na área financeira e digital: “Temos de apostar nesta nova geração, eliminando em simultâneo os modos de pensamento europeus típicos em torno do pessimismo, conservadorismo e avesso ao risco. Sabemos que muita gente pelo mundo quer viver, estudar e investir na Europa. O nosso grande objetivo é eliminar esses obstáculos que enfraquecem o nosso futuro. O nosso destino está nas nossas mãos, sabemos o que fazer e agora temos de agir”. A entrevista de Letta permite destacar os sistemas de educação, formação e investigação e desenvolvimento como os grandes ativos de atração da União, enquanto experiências inspiradoras de um ambiente mais fervilhante e estimulante do investimento nessas atividades diferenciadoras. É curioso também como Letta transporta para as questões da competitividade o tema da “advocacy” que estamos habituados a ser invocada nos processos de participação cívica, abrindo espaço a um setor privado mais proativo e interventivo nas suas mensagens ao governo da União.

De qualquer modo, convirá refletir que a Europa está a ser alvo de uma guerra cultural sem tréguas, implacável, que não olha a meios e tem-nos em grande quantidade.

Ora, não se combate uma guerra cultural bajulando quem perpetra essa ameaça. A bajulação já é uma prova de fraqueza.

 

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