(A vida política espanhola é uma fonte inesgotável de reflexão e controvérsia, nada que não fosse antecipável se tivermos em conta toda a complexidade da transição democrática em Espanha, após uma ditadura violenta instalada na sequência de uma Guerra Civil que deixou marcas em muita gente e em muitas instituições. À esquerda, incluindo a mais radical e à direita, incluindo o extremismo do VOX que vai mostrando as suas garras, há matéria que baste para acompanhar, não propriamente para extrapolação fácil cá para dentro, já que o contexto da sociedade espanhola é único, mas para refletir sobre tendências e questões mais gerais da ação política. Já ao centro não há nada praticamente a acrescentar, uma vez que a polarização política avançou rápida e irreversivelmente, destruindo praticamente tudo o que era centrista à sua frente. Mais ainda, a vida política espanhola é marcada por uma outra especificidade, essa praticamente única em todas as latitudes, que é a importância do regionalismo nacionalista na política nacional, veja-se a sua relevância para explicar a por vezes incompreensível resistência do governo de Sánchez. Por estes dias, a matéria de controvérsia anda pelos lados do enfraquecido PODEMOS, a força política espanhola mais próxima em termos de ideário do nosso Bloco de Esquerda. É conhecida a evolução operada na direção desta força política quando Pablo Iglésias abandonou a liderança, entregando-se intermediamente à docência de ciência política. Não tendo conseguido a sua aceitação definitiva na cátedra de Ciência Política, creio que na Complutense de Madrid, Iglésias refugiou-se primeiro em podcasts para continuar a divulgar o seu pensamento crítico, acabando neste momento por dirigir um bar na capital espanhola que pretendia introduzir um ambiente de tertúlia política. A sua mulher Irene Montero continuou ativa na política em torno de temas fraturantes, mas globalmente o PODEMOS está hoje reduzido, senão a uma insignificância, pelo menos a uma perda de influência, cedendo a liderança da esquerda mais radical ao SUMAR de Yolanda Diáz).
Qual é então a controvérsia que por estes dias tem animado o já enfraquecido PODEMOS e que levou o jornalista Roberto L. Blanco Valdés a falar de fariseismo do casal Montero-Iglésias?
Há alguns anos, ainda o PODEMOS contava nas sondagens, o casal foi envolvido numa polémica de intensidade média quando adquiriu um Madrid uma moradia de perfil em parte desligado do discurso político que era apanágio de Iglésias e Montero. Não se tratando de uma moradia de luxo resplandecente, o perfil adquirido era claramente dissonante do estilo com que o PODEMOS fazia então política. A controvérsia, de média intensidade repito, não teve um impacto significativo e o casal pôde continuar a sua vida então programada.
O casal volta a estar nos holofotes do comentário crítico. O jornalista Blanco Valdés dá-se ao luxo de ir buscar à Real Academia Espanhola e ao seu dicionário a definição de fariseu: “Homem hipócrita, especialmente porque finge-se de virtuoso e julga com severidade os demais”. Ou seja, alguém que pretende que cumpramos regras que ele próprio não respeita.
A matéria da controvérsia mais recente é por muita boa gente classificada como exemplo de populismo que está a contaminar a política, mas uma análise mais séria mostra que a interpretação pode estar errada. O casal Montero-Iglésias é agora acusado de, assumindo uma postura claramente contrária ao seu ideário e defesa acérrima da educação pública como mitigadora de desigualdades, ter colocado os seus dois filhos, creio que gémeos, num colégio privado, tão frequentes e conhecidos em Espanha. O casal tem obviamente toda a liberdade de querer dar aos filhos a educação esmerada que ambiciona, mas nos tempos correntes será populismo criticá-los por isso ou trata-se simplesmente de uma incoerência de pensamento a que um cidadão eleitor medianamente atento é sensível? Em meu entender, o eleitorado atual é particularmente sensível a estas incoerências entre pensamento e prática, entre parecer e ser efetivamente, pelo que a defesa da educação pública, quando assumida, tem consequências óbvias sobre o posicionamento vivencial de quem assume essa defesa. A pretensa superioridade moral da esquerda é algo de insuportável e a classe política da esquerda mais jovem e alternativa parece não ter compreendido ainda que a incoerência de posições a pode levar ao caminho da irrelevância.
Populismo? Neste caso, olhe que não …
Haverá outros domínios em que esse combate é fundamental. No caso vertente há apenas que reconhecer que a incoerência se paga caro.

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