(É claro para todos que o assassínio de Charlie Kirk tenderá seguramente a levantar ventos e tempestades que adensarão as ameaças de derrocada democrática em que a sociedade americana está mergulhada. O assassínio vai ser o pretexto para delações e perseguições de toda a espécie e sobretudo para reforçar a narrativa MAGA e Republicana de que os “esquerdistas” (leftists) estão por trás de toda a violência política, o que é manifestamente falso, pois existe evidência de que é, pelo contrário, a direita radical que perpetrou a maioria dos atentados nos últimos anos na tão violenta sociedade americana. Bastaria, por isso, esse clima de delação e perseguição declarada para que o desaparecimento violento de Kirk vá representar um marco na ascensão do radicalismo antidemocrático. Existem, hoje, por exemplo, listas de professores universitários apontados a dedo como exemplos de defensores de valores e políticas liberais, decorrentes de delações de alunos. Daí à caça às bruxas será um simples passo, um pequeno passo. Mas não é esse o ponto da minha reflexão de hoje. Charlie Kirk não é um fenómeno isolado. A sua ascensão e popularidade, como guardião avançado do Trumpismo, representam muito mais do que isso. A expressão quantitativa do apoio que o personagem granjeou na sociedade americana corresponde, sobretudo entre a população mais jovem e universitária, a um indicador de regressão social e civilizacional. Sim, é disso que se trata, de recuo civilizacional, de marginalização e desvalorização de direitos sociais arduamente conquistados. Existem várias matérias em que a regressão social é visível. O papel da mulher é uma dessas matérias.)
Paul Krugman tem uma visão particularmente lúcida desse recuo civilizacional, protagonizado pelo conservadorismo radical americano que pretende devolver a mulher ao papel que tão bem representa a imagem que abre este post e que Krugman utiliza para abrir a sua mais recente crónica sobre o assunto.
A grande referência que Krugman utiliza para referenciar o referido recuo civilizacional é dada pela grande economista, Nobel de Economia, Claudia Goldin que intitulou de “revolução silenciosa”, iniciada desde há mais de 30 anos, por conseguinte anterior ao nascimento do próprio Kirk e dos seus principais apoiantes mais jovens. Tal como Goldin o assinala, a revolução no papel da mulher na sociedade americana não pode ser medida apenas pelo aumento do peso do emprego feminino no emprego total. A verdadeira revolução observada nas décadas de 70, 80 e 90 foi concretizada na mudança dos tipos de emprego que as mulheres passaram a ocupar com toda a justiça e naturalidade a partir do momento em que as suas qualificações começaram irreversivelmente a aumentar. A verdadeira revolução ocorre quando as mulheres puderam aspirar a desenvolvimentos de carreira similares às dos jovens masculinos, quando entravam no mercado de trabalho. A melhoria de qualificações operada com a frequência de licenciaturas e graduações superiores mais elevadas passou a ser encarada não como uma simples manifestação de desenvolvimento cultural, mas como a procura deliberada de trajetórias profissionais que têm na qualificação o seu principal veículo de entrada e sustentação.
O que ressalta das posições que Kirk apregoava nas suas declarações era a reversão desta revolução silenciosa como se ela fosse a causa e o mal a abater na sociedade americana. Isto sem que o conservadorismo radical proponha qualquer alternativa. É apenas de recuo civilizacional que se trata, de uma cápsula do tempo que colocaria de novo a mulher nas suas tarefas domésticas como a elegância da imagem que abre este post o ilustra na perfeição. Tudo se passa como se Kirk tomasse partido e compreendesse o ressentimento masculino pela ultrapassagem de que os homens foram vítimas. Krugman mostra na sua reflexão que o peso dos homens fora da força de trabalho tem vindo a crescer na sociedade americana e não obviamente por uma razão progressista dos homens terem decidido ser “homens domésticos”. A verdade é que em muitos países, e os EUA estão nesse grupo, a qualificação das mulheres revela indiscutivelmente um maior dinamismo do que a dos homens.
O que é aparentemente incompreensível é a forte presença feminina nas audiências de Kirk. Será que as mulheres estão de acordo com o recuo civilizacional e dispostas a regressar ao papel de “dondocas” com serviçais de apoio ou ao papel de donas de casa amarguradas, à beira de um ataque de nervos, esquecidas e desvalorizadas nas suas funções domésticas?

Sem comentários:
Enviar um comentário