quinta-feira, 11 de setembro de 2025

ESTÁ TUDO PRESO POR FRÁGEIS ARAMES

 

(Devo confessar que nunca fui muito propenso a olhares sobre o meu próprio passado, não me enxergando com consistência e gravidade suficientes para me desafiar nesse sentido. Também por isso nunca tive grandes impulsos de redação de memórias. Creio que seriam sensaboronas quanto baste e que o leitor não resistiria às primeiras páginas. Mas sou propenso a parar por momentos e tentar sistematizar o estado da arte do presente e sobretudo do presente que nos envolve. Os mais ousados podem retirar destas reflexões sobre o estado da arte do presente para projetar futuros acontecimentos e a sua relação com a nossa postura na vida, mas esse não é o meu interesse. Quando ensaiei brevemente a compreensão desse estado da arte, a imagem que me ocorreu é que vivemos num contexto preso por arames ou pontas, frágeis, mesmo muito frágeis, o que nos deve levar em meu entender a viver o nosso presente o melhor possível, se possível de bem com os outros, pelo menos com os mais próximos ou com aqueles que nos identificamos, mesmo não sendo próximos. Mais do que através de uma reflexão sistemática e teorizada, vou sobretudo trabalhar com alguns exemplos concretos exteriores e cá dentro, tentando demonstrar quão frágeis são os arames ou as pontes que vão mantendo tudo isto de pé. Talvez se a vontade ajudar possa utilizar estas reflexões concretas para uma sistematização mais elaborada sobre a fragilidade do nosso tempo presente e as causas que a podem explicar.)

Comecemos pela fragilidade da situação de paz e segurança (podre, instável ou como queiramos classificá-la) que se vive na Europa, na sequência da agressão russa à Ucrânia. Bem podem as autoridades russas clamar que o objetivo da armada de drones não era atacar a Polónia e que se tratou de uma passagem inadvertida pelo território polaco para atingir alvos ucranianos, não consegui perceber quais seriam esses alvos. Em simultâneo, alguns oficiais russos de patente e responsabilidade elevadas vão se descaindo com revelações do tipo que a Ucrânia é um simples passo em direção a objetivos mais amplos e vastos, com relevo para o retomar da influência russa sobre a chamada Europa de Leste. Claro que oficialmente Putin não subscreverá com clareza essa ambição, mas sabemos que no seu entorno há gente apostada em recuperar o ideário do imperialismo russo de outros tempos e também que esse pensamento já foi formulado em alguns discursos dele próprio.

A pronta resposta das autoridades polacas mostra que o país está já em posição de defesa ativa há muito tempo. A história ensina-nos que nos territórios europeus mais próximos da Ucrânia e da localização das tropas russas invasoras (sobretudo a Polónia e os países bálticos) a compreensão interna da ameaça russa não tem qualquer comparação possível com a dos restantes territórios europeus. Se for verdade que a estratégia russa é a de realização de testes sucessivos e de ir apalpando terreno sobre as reais capacidades de resposta rápida a qualquer intrusão mais violenta, a minha perceção é que a ideia de que existe uma capacidade média na União Europeia não tem significado, pois a Polónia e os países bálticos têm uma perceção da ameaça que não é comparável com a da resposta como um todo. Todo este contexto gera uma situação presa por arames que pode a qualquer momento descambar para a extensão geográfica do conflito na Ucrânia, acaso as dimensões do teste russo ou da resposta dos países testados ultrapassem limiares críticos de contenção. Creio que, mais tarde ou mais cedo, a perceção mais completa e avançada da ameaça sentida nos países Bálticos ou na Polónia evoluirá progressivamente para territórios mais longínquos do teatro de guerra, aumentando a fragilidade dos arames que vão sustentando a situação, pressupondo que os Ucranianos continuarão a resistir à ambição do invasor.

Mudando de continente, o abatimento a tiro do influencer e tik toker Charlie Kirk, apaniguado e ativista ao serviço de Trump, alguns segundos depois do baleado ter feito a apologia das armas segundo uma lógica que ele considerava racional, demonstra na perfeição como a sociedade americana está também presa por arames, aliás cada vez mais frágeis. Desde a invasão do Capitólio que Trump tão condescendentemente quis desvalorizar (uma das hipóteses explicativas é o seu próprio envolvimento, mesmo que indireto), percebe-se que a violência generalizada está presa por um fio na sociedade americana. O atentado vai servir a Trump para radicalizar o seu discurso contra a esquerda, vamos assistir seguramente a uma maior violência repressiva e provavelmente o envio de tropas nacionais para os Estados em que Trump não é dominante entre o eleitorado. Todo esse contexto vai gerar obviamente maior violência de contestação e num país descontrolado em matéria de posse de armas pode antecipar-se o pior. Um Presidente incendiário e não de contenção, que trata desigualmente de forma despudorada os ataques e assassínios de gente de esquerda e a pessoas da sua proximidade política e pessoal, é o maior combustível que a violência organizada poderia desejar.

Analisemos agora um exemplo de situação presa por arames a nível interno. A manutenção das infraestruturas, sobretudo as que encerram maiores riscos de segurança, vive tempos difíceis em função da convergência de uma série de razões: (i) a manutenção nunca desperta a mesma atenção dos políticos e decisores comparativamente com as obras novas; (ii) os fundos europeus exacerbaram a propensão para as novas infraestruturas, já que admitem e com razão que a manutenção deve ser preocupação dos orçamentos nacionais; (iii) o lento encolhimento e degradação das máquinas ministeriais têm penalizado seriamente os serviços de fiscalização e avaliação de condições de conservação por parte dos serviços públicos e das suas equipas técnicas; (iv) a pressão turística intensificou a utilização de muitas infraestruturas; (v) na sequência do famigerado “new public management”, a externalização de serviços de fiscalização e avaliação de conservação tem sido reforçada; (vi) a austeridade orçamental tende a fixar preços relativamente fixos ou inferiores à taxa de inflação para os contratos de externalização desses serviços, invocando para isso a pressuposta maior eficiência das empresas privadas; (vii) a contratação pública da aquisição desse tipo de serviços está cheia de pontos negros e obscuros (leiam o artigo da Clara Ferreira Alves sobre a empresa contratada para a manutenção do trágico elevador da Glória, que ficarão documentados sobre o assunto).

A mistura das regras de mercado com a seriedade dos contratos de manutenção e conservação daria para um manual de economia pública, à luz dos incentivos económicos que se desenvolvem nesse tipo de contratos. Não raras vezes, a tal maior eficiência privada dessas empresas leva-as em condições de orçamentos fixos ou de contenção de preços a diminuir rotinas e a encolher serviços. Simplesmente o mercado a funcionar.

Como os sete fatores que anteriormente enunciei não são de agora, alguns dos quais, como por exemplo, a desertificação das máquinas ministeriais já vem de longe, posso imaginar que o estado da arte da manutenção e conservação de infraestruturas com maior risco de segurança possa ser periclitante e não quero ser alarmista nesta matéria. Estou simplesmente a fazer uma dedução lógica à medida que vamos conhecendo mais pormenores do modelo de manutenção que estava a ser praticado na infraestrutura em que ocorreu o trágico acidente. Se for inteligente, a candidatura de Alexandra Leitão tem nesta matéria uma oportunidade única de diferenciação e de proposta de soluções inovadoras para este problema, já que a desorientação de Moedas tem-se encarregado de desconstruir a falsa ideia do radicalismo da coligação chefiada por Alexandre Leitão.

Quadrantes diversos, diferentes problemas, mas tudo preso por arames.

É este o tempo que temos.

 

Sem comentários:

Enviar um comentário