(Financial Times)
(A inflação é daquelas matérias económicas em que pode existir uma profunda divergência entre as perceções dos consumidores que a têm de enfrentar e a bateria de indicadores estatísticos e até de barómetros de opinião que a procuram medir. As razões para essa possível divergência são várias, mas regra geral muito claras e compreensíveis. A perceção dos consumidores é ditada por cabazes específicos de produtos, que variam obviamente entre padrões de consumo e de rendimento. É de produtos e serviços muito concretos que essas perceções são construídas. Ora, a medida económica da inflação é concretizada através de uma bateria infinda de índices de preços, que são obviamente abstrações concebidas em função de cabazes-tipo de bens de consumo e serviços. Além disso, os economistas esmeram-se regra geral nessa definição de critérios de medida de inflação, suscitando conceitos como inflação central (core inflation), inflação subjacente, só para citar os mais populares. Vem isto a propósito do sentimento geral algo divergente que está formado na União Europeia, obviamente com diferenças entre as suas diferentes economias. Mas ao nível da inflação geral em função da qual o Banco Central Europeu (BCE) define a política monetária, dir-se-ia que as autoridades monetárias estão convictas de que o fenómeno está controlado, com a inflação geral a rondar para cima os 2%, a tal meta da estabilidade dos preços que tanto influencia a política monetária. Entretanto, ao nível do que sentem os consumidores, pelo menos em Portugal, o sentimento expresso não é de acalmia de expectativas, mas antes de preocupação alimentada nos pontos de compra. Mas, nos últimos tempos, existe informação estatística que comprova a preocupação dos consumidores, designadamente no que respeita ao contributo dos produtos alimentares, a ponto de se poder falar de uma inflação-alimentação.)
Se quisermos pensar retrospetivamente sobre este problema, seríamos tentados a reconhecer que as autoridades monetárias tiveram razões no passado para desvalorizar o peso e influência dos preços dos bens alimentares nos diferentes índices de medida da inflação. A razão principal assentava numa evidência: com o aumento generalizado do rendimento das famílias, os bens alimentares tendem a perder peso no seu consumo, acreditando-se por isso que tais preços não seriam os mais indicados para antecipar o comportamento futuro da inflação.
As consequências económicas da pandemia e alguns problemas de oferta de produtos agrícolas na sequência da guerra na Ucrânia vieram mudar o contexto. O Financial Times assinala que os Bancos Centrais começam a preocupar-se com a subida dos preços dos produtos alimentares. No Japão o preço do arroz entrou nos cálculos do Banco Central e o próprio Trump trouxe para as suas permanentes afirmações a questão dos ovos. Compreende-se que a formação de expectativas por parte dos consumidores é fortemente influenciada pelos preços desses produtos.
A curiosidade está em que, neste caso, parece não haver qualquer divergência entre as perceções dos consumidores e o comportamento real dos preços dos bens alimentares, tal como os índices respetivos o documentam.
O gráfico que abre este post, publicado por Chris Gilles no FT, é eloquente quanto à medida da diferença substancial observada entre 2019 e 2025 relativamente à chamada inflação central (core inflation) e a inflação-alimentação. A diferença favorável à inflação alimentar é praticamente generalizada, sendo possível encontrar uma forte correlação entre as duas medidas de inflação. Mas claro que uma forte correlação não anuncia necessariamente causalidade. É por isso relevante registar que a inflação alimentar permite prever melhor a inflação futura do que a inflação central permite antecipar a subida dos preços alimentares.
(Financial Times)
Ou seja, não existe divergência entre perceções e registos estatísticos. Os consumidores (e os Bancos Centrais) têm razões suficientes para estarem preocupados com esta questão. Tanto mais que não é fácil identificar se a subida dos preços alimentares entre 2019 e 2025 se deve a questões de custos de produção na origem (em alguns casos óbvias por devastações na produção seja pela guerra, seja pelas diferentes formas de severidade climática) ou se, pelo contrário, são as estruturas de distribuição e a especulação no retalho que a explicam. Existe evidência de que a evolução nos preços alimentares no retalho tem sido mais significativa do que na produção, isso é pelo menos o que os dados da FAO indicam.
(Financial Times)
Resumindo, registo a ideia de que, neste caso, a análise económica consegue medir bem as preocupações dos consumidores, assinalando que as suas preocupações com a inflação alimentar são corroboradas pelos indicadores disponíveis. E não adianta acenar com a mezinha de que o aumento de rendimento tenderá a fazer descer o peso das despesas alimentares nos cabazes das famílias. Numa sociedade polarizada, as preocupações das famílias mais pobres e da classe média não se alimentam de pesos ou percentagens, mas antes de valores absolutos e esses exigem cada vez mais despesa.
Moral da história: neste contexto, no discurso político, não pode exagerar-se a utilização dos dados macroeconómicos globais para sossegar os espíritos dos que sentem o seu cabaz de bens alimentares a subir em permanência de preço. As famílias de que falámos não se alimentam de PIB, mas de coisas mais comezinhas, que estão mais caras e, além do mais, não sentem o seu rendimento evoluir no sentido de compensar essa tendência.



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