(Todos nos recordamos da obsessão que o neoliberalismo e a sua crítica representaram para uma certa esquerda em termos de modelo económico preconizado e de política económica imposta ou recomendada às economias com trajetórias de desenvolvimento ensaiadas ou simplesmente desejadas. Essa obsessão transformou-se rapidamente em vulgata, tamanha era a magnitude e diversidade dos argumentos que nele se apoiavam, para culpabilizar o insucesso das transições para o desenvolvimento e para a economia de mercado. Entretanto, algo de surpreendente aconteceu. O neoliberalismo já viveu melhores dias e a poderosa fratura que atravessou a globalização acabou por transformar os ímpetos e aspirações neoliberais em coisa do passado. Não menos surpreendentemente, não se registaram lágrimas, nem sequer de crocodilo, para assinalar o enterrar dessas poderosas convicções. A tal esquerda obcecada com o neoliberalismo parece perdida em encontrar um novo alvo para as suas críticas e recriminações. E, ainda mais estranho, não têm abundado na literatura e na blogosfera explicações consistentes para a queda do neoliberalismo. Foi essa convicção que despertou a minha curiosidade relativamente à explicação que o sempre criativo Branko Milanovic publicou recentemente sobre essa matéria, antecipando na blogosfera, como é seu hábito, um capítulo do seu novo livro em acelerada preparação, The Great Global Transformation: National Market Liberalism in a Multipolar World. Se recordarmos a pujança e o interesse de obras anteriores de Milanovic, não é difícil antecipar a perceção de que vamos ter formulada uma posição que preencherá um espaço vazio na teoria económica que procura explicar a globalização e as suas vicissitudes. O que responde à minha perplexidade: o que é que explica que a queda de algo que chegou a ser de invocação obsessiva não tenha tido ainda uma explicação convincente.)
Para enquadrar a explicação proposta por Milanovic, convém recordar que a sua formação académica foi realizada na Sérvia, mais propriamente em Belgrado, antes de rumar ao Banco Mundial e à Universidade de Nova Iorque e que, por isso, se trata de um economista com uma larga informação e investigação sobre as economias de leste, desde a emergência do comunismo soviético até às múltiplas transições para o mercado observadas a partir da era Gorbachev. É curioso assinalar, e este é um aspeto praticamente ignorado na história do neoliberalismo, que esta corrente económica e política encontrou uma enorme recetividade nas gerações mais instruídas e menos conformistas que nas sociedades de leste despertaram nos anos 60, onda em que o próprio Milanovic se inclui.
A explicação proposta pelo economista sérvio equaciona algum paralelo com a queda do próprio comunismo a leste, segundo uma fórmula que ele sintetiza numa fórmula feliz – “o neoliberalismo foi derrotado pelo mundo real”, sem que isso signifique que tenha emergido um paradigma alternativo. Ou seja, não seria a transformação das ideias que terá determinado a sua queda, mas antes a sua incapacidade de lidar e de se adaptar ao mundo real.
Talvez a argumentação mais sólida para explicar esta incapacidade de adaptação ao imperfeito e impuro mundo real seja a que Milanovic desenvolve em torno do universalismo que o neoliberalismo exige para ser aplicado. Esse universalismo, que poderia justificar a adesão inicial que provocou, acaba por bater de frente na conflitualidade com os contextos locais em que se pretende aplicar a receita. A fórmula nunca teve a flexibilidade necessária e suficiente para integrar a diversidade dos contextos locais. Rapidamente, o sucesso económico passou a ser entendido como uma fonte de superioridade moral, gerando a tão conhecida falta de empatia com os mais fracos e com os mais pobres, algo que é fundamental na adaptação a contextos locais. Todos nos recordamos da falta de empatia dos diretórios da Troika para com as consequências reais das medidas de austeridade, evidenciando sempre um dilatado excesso de confiança e de orgulho que está na origem da desproporção das medidas e efeitos colaterais face aos objetivos que se pretendia atingir.
A parte mais interessante da reflexão, Milanovic reserva-a para a sua obra em preparação. Fornece, entretanto, uma proposta de análise que aponta para a sua convicção de que a emergir um paradigma alternativo ele vai ser o contrário das ambições universalistas que o neoliberalismo transportava consigo próprio. AS ideologias universais talvez tenham acabado, ou a realidade vai nos surpreender e contraditar essa antecipação. O apelo do particularismo é forte. Mas um mundo pejado de convicções particularistas é extremamente perigoso do ponto de vista da conflitualidade possível, a não ser que a invocação dos particularismos seja acompanhada de regras e princípios mínimos de não beligerância.
Tudo isto parece estar a ser antecipado pela geopolítica atual.
Deposto o neoliberalismo, salvo pequenas ilhas de resistência inexpressivas e frequentemente às avessas com os contextos locais (veja-se a Argentina de Milei), podemos nos questionar o que é que se segue. Esta parece ser uma das grandes questões do nosso tempo de incerteza total.

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