(Entre as notícias mais perturbadoras dos últimos dias, os resultados eleitorais positivos alcançados por Milei na Argentina ocupam, em meu entender, um estranho lugar de destaque. A chamada política de motosserra foi validada nas urnas, transformando de repente Trump e o controverso presidente argentino em vencedores declarados. Trump é-o na medida em que fez depender o resgate financeiro de uma perturbada Argentina do respaldo eleitoral das políticas de Milei e este último é-o também porque, apesar de toda a tragédia social necessária para vergar a inflação, sai reforçado e como os livros nos dizem, com novo fôlego para investir sobre regulações e direitos adquiridos. Do ponto de vista de uma orientação de centro-esquerda, estes resultados são em parte trágicos e recomendam uma profunda reflexão. Milei é hoje praticamente o único representante de um neoliberalismo militante e agressivo, tendo sido validado apesar dos fumos de corrupção que passaram pela sua família, nada de espantar num país de corrupção endémica.)
Os argentinos têm uma ampla experiência traumática de resgates financeiros adiados com séria deterioração das condições de vida enquanto a situação que lhes dá origem se prolonga, verificando-se depois o agravamento inequívoco das mesmas quando a condicionalidade dos resgates é inapelavelmente aplicada. Neste contexto, não me custa absolutamente nada admitir que a condicionalidade imposta por Trump pode ter sido decisiva para o resultado observado nas urnas. A dicotomia era simples e a chantagem não menos clara: haveria resgate americano acaso Milei fosse validado nas urnas. Os argentinos poderão ter pensado que seria melhor aliviar para já o fardo da austeridade, mesmo que lucidamente esperem ainda uma maior agressividade das políticas de Milei após o resgate prometido por Trump. Tudo isto é ainda mais surpreendente, mas explicável, se pensarmos que no início de setembro passado o partido de Milei, o Libertad Avanza, tinha passado por uma importante derrota nas eleições locais de Buenos Aires.
Não menos importante é o facto das alternativas políticas a Milei andarem pelas ruas da amargura. Convenhamos que admitir que Cristina Kirchner e os resquícios do peronismo poderão representar alguma alternativa saudável à motosserra de Milei equivalerá a remeter a alternativa a Milei para as calendas. A continuidade de Kirchner na crista da onda traduz o grau zero da renovação política e, o que é ainda pior, significa esperar que o comprometimento com as nuances da corrupção anterior poderão ser uma alternativa fiável e reconhecida como válida pelos argentinos.
E daqui ressalta a mais importante conclusão que podemos extrair da experiência de liberalização agressiva na Argentina. O estilo motosserra da desregulação violenta é tanto mais suscetível de ser aplicado quando mais entranhados estão os padrões de nepotismo, corrupção e compadrio existentes na situação sobre a qual pende a ameaça de um resgate financeiro. O peronismo, que historicamente conduziu a industrialização argentina segundo um modelo de proteção do mercado interno e de substituição de importações, agarrou-se ao poder como uma lapa, sofrendo primeiro o trágico assalto dos militares e depois a motosserra de Milei.
O que sabemos hoje é que são situações deste tipo, de compadrio entranhado, que abre o caminho à desregulação violenta. O paradoxo é acreditar que, com todo este malfadado passado histórico, os resquícios do peronismo poderão ser uma alternativa.
Valha-nos uma divindade qualquer.

Sem comentários:
Enviar um comentário