sábado, 18 de outubro de 2025

O PS VISTO POR JPP

 

(Não, não se trata de analisar o que o neófito na Assembleia da República Juntos pelo Povo pensa do Partido Socialista, mas de reter como tema de comentário a excelente crónica que José Pacheco Pereira escreve hoje no Público sobre a crise de identidade que atravessa o PS. Seria mais saudável que o PS fosse capaz endogenamente de analisar a sua própria transição. Há vários escribas e palradores de serviço que publicamente o têm ensaiado, mas muito sinceramente ainda não li nada de jeito sobre o tema e, por isso, os que se preocupam com a crise de identidade do partido têm na lúcida crónica de JPP uma boa base para o fazer. Metaforicamente, o PS de José Luís Carneiro (JLC) parece hesitante, face a uma tormenta que começou antes das últimas legislativas, mas que com elas atingiu o clímax da perturbação, entre ficar imóvel e protegido até que a tormenta passe e ensaiar alguma capacidade de reação para precipitar a perda de força dessa mesma tormenta. O estilo de JLC tende a favorecer a primeira das posições, mas no meu modesto entender de eterno apoiante crítico, não é líquido que a primeira das posições atrás enunciadas se transforme em inevitabilidade. O artigo de JPP fornece linhas de reflexão importantes para discutir esse posicionamento, começando por aquilo que designaria de batalha pela narrativa dominante. A onda de direita instalada no mundo e no país tem encostado às cordas as forças socialistas e sociais-democratas impondo-lhe o rótulo do radicalismo, como Carlos Moedas o fez insistentemente em Lisboa, pelo menos até que o grave acidente do Elevador da Glória desviou essa narrativa para outros temas. O pior é que muitos dos que deveriam resistir a essa ignomínia e contrapor-lhe a importância do socialismo democrático vão na onda da cedência, piscando o olho a essa tendência, despindo-se de qualquer adereço que possa ser considerado símbolo do radicalismo, não percebendo que para a onda de direita reinante tudo é radical, desde que não alinhado com as suas próprias convicções. O mesmo se passa em relação ao tema imigratório e da segurança, onde alguns partidos sociais-democratas como o da Dinamarca estão na primeira fila dos que copiam descaradamente a onda de rejeição da imigração que a extrema-direita logrou colocar no centro do debate político. O plano inclinado para a crise de identidade de que fala JPP está criado e quanto mais inclinado o deixarmos mais difícil será infletir a situação.)

No caso do PS nacional, não é necessário grande benchmarking para que o partido mais pensante e lúcido encontre referentes para se posicionar de novo no contexto político nacional. Basta estar atento ao confronto das duas tendências que geriram o partido depois da saída de António Costa. Resumidamente, poderá dizer-se que o PS até às legislativas experimentou a esquerdização do “pedronunismo” e depois a perspetiva mais moderada liderada por José Luís Carneiro. É importante notar que não se trata de experiências ensaiadas e depois irremediavelmente abandonadas. Como as Presidenciais o têm vindo a demonstrar e o penúltimo post do meu colega de blogue o evidenciou oportunamente, certamente com informação relevante de suporte, esse confronto de posições não está ultrapassado. Mas os representantes da esquerdização atrás mencionada parecem não compreender que, qualquer que seja o protagonista dessa corrente, Pedro Nuno Santos ou qualquer outro apaniguado, o eleitorado já rejeitou liminarmente essa tendência e seguramente não será com ela que o PS poderá recuperar a sua identidade. Em política, admitir que a identidade dos partidos é perene e insensível ao contexto em que o partido pretende reafirmar a sua presença é de uma ingenuidade tão peregrina que o preço a pagar será certamente muito alto para novas experiências.

Quer isto significar que a recuperação da identidade do PS estará algures entre a rejeitada convicção do “pedronunismo” e um pouco mais de coragem política do que aquela que está a ser revelada pela liderança de José Luís Carneiro. O PS necessita de recuperar a sua relação com o mundo laboral, nas condições atuais em que o mercado de trabalho está hoje organizado e nos últimos tempos não se têm registado sinais de haver alguém com unhas no partido para o desenvolver. Recuperar a dimensão laboral do partido é estar atento à democracia empresarial. Tem ainda de uma vez por todas construir uma visão coerente para a política de habitação, abandonando as mantas de retalhos que António Costa deixou dependuradas, quando em desespero de causa lançou medidas pontuais à revelia da política de habitação que havia sido objeto de uma Resolução do Conselho de Ministros do seu próprio governo (a chamada Nova geração de Políticas de Habitação, Resolução n.º 50-A/2018, de 2 de maio). Continuar impávidos perante a evidência de haver uma massa de gente que não ganha o suficiente para suportar uma renda moderada, calculada pelo pensamento esdrúxulo deste atual Governo) não significa mais do que simples autismo político que também custa caro eleitoralmente. Parece não ser difícil concluir que uma das raras últimas medidas de conceção socialista foi a do passe alargado para os transportes metropolitanos que proporcionou ganhos materiais sensíveis a muitas famílias desfavorecidas e da classe média baixa, que estiveram na origem da maioria absoluta de António Costa. Estendamos então medidas dessa natureza a outras realidades. E, do mesmo modo, é necessário ultrapassar o “esquerdismo” da política de saúde de Marta Temido, que ignorou que hoje existe já no terreno uma convivência tal entre saúde pública e privada que não pode mais ser ignorada no desenho das soluções. A matéria está facilitada pois face à inação do atual Governo não será difícil propor algo mais consequente, que não ignore a dimensão dual que o sistema hoje já apresenta, concordemos ou não com essa emergência. E, finalmente, parece imperioso que o PS reconstitua a sua imagem territorial de país, que se faça ouvir sobre a distribuição territorial mais equilibrada do investimento público, que seja porta-voz e protagonista de uma nova política para o interior ou “interiores do país” e que seja claro quanto a matérias fulcrais como a real dimensão do hub aéreo que se pretende associar à capital (conhecem as minhas dúvidas quanto à seriedade de se partir do pressuposto de que pode haver um hub relevante nesta matéria) e o desenvolvimento futuro da rede ferroviária de alta velocidade e rede complementar associada

Um PS menos fulanizado, menos sensível ao “amor ou ódio” que os principais protagonistas nutrem uns pelos outros, ao mesmo tempo que delimitam áreas de influência de famílias, sejam elas, maçónicas, católicas ou sindicais, é algo que é necessário conseguir para uma recuperação efetiva de identidade.

São ideias que valem o que valem e cuja discussão não pode substituir-se à necessidade urgente de combate aceso à narrativa que a onda de direita pretende instalar de que socialismo democrático e social-democracia são formas infantis de radicalismo.

Ceder a essa narrativa equivalerá a pagar adiantado as cerimónias fúnebres de um desaparecimento possível.

 

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