sábado, 31 de agosto de 2013

ARROGÂNCIA CONSTITUCIONAL



Como seria de prever, a decisão do Tribunal Constitucional de há dois dias teria de suscitar uma montanha de reações, focadas essencialmente na ideia de que a governação está atada de pés e mãos que não consegue reduzir a despesa do Estado. As nuances variam sobretudo em torno de quem é o bode expiatório de toda essa pretensa impotência de intervenção, se a Constituição, se o próprio Tribunal Constitucional. Neste último plano e com o exagero provocatório de sempre, Vasco Pulido Valente não hesita em classificar o TC de trincheira da classe média portuguesa, abrigada em torno do Estado e da defesa das suas regalias. Estou convencido de que toda esta tropa de comentadores que gostam de afirmar a sua costela liberal, regra geral sempre alicerçada num “apoiosinho” qualquer vindo das bandas do Estado, não se deu ao luxo de ler atentamente o acórdão que sustentou a decisão de inconstitucionalidade.
O acórdão é bem mais interessante do que essa atoarda de comentário fácil e curiosamente fui encontrar na declaração de voto de Maria Lúcia Amaral a posição que melhor reflete a minha interpretação que ficou da leitura. Cito porque a prosa é boa e a senhora juíza tem cabeça e sabe o que diz:
“(…) A garantia de segurança do emprego, que o artigo 53º da CRP consagra, não é uma “especificidade” da Constituição portuguesa. É antes um princípio comum aos Estados da Europa, se atentarmos no que dizem os artigos, que o Acordão cita, das cartas europeias de direitos. O que está em causa é, tão-somente, o direito a não se ver arbitrariamente privado de um emprego que legitimamente se obteve, e que é o modo de sustentação da via própria e familiar. A aplicação desta garantia (que é assim, tal como o princípio da continuidade mínima da ordem jurídica, um princípio constitucional comum aos Estados da Europa) ao emprego público traz, por certo, especificidades. Uma coisa é admitir restrições ao direito à segurança no emprego quando o que está em causa – como sucede nas relações laborais do direito privado, é a iniciativa económica privada, enquanto “valor constitucional” que legitime a restrição; outra coisa é admitir restrições a esta garantia quando o que está em causa – como sucede nas relações de emprego público – o bom funcionamento do Estado, convocado como motivo e fundamento para a restrição. Sobretudo em circunstâncias, como estas que rodeiam o contexto em que a presente questão é posta ao Tribunal, em que o “bom funcionamento do Estado” significa nem mais nem menos do que o imperativo de reestruturação da Administração Pública, não pode negar-se o particular peso e a particular intensidade dos valores constitucionais que justificariam a restrição do direito à segurança no emprego. Não há – sejamos claros – ordem constitucional que perdure para além da sustentabilidade do Estado, como não há constituição que racionalmente eleja como princípio orientador da ordem pública a “irresponsabilidade” (ou a indiferença) da geração presente perante a autonomia das gerações futuras (sublinhado nosso).Simplesmente, e uma vez mais, para legitimar o comportamento arbitrário da administração no despedimento dos seus próprios “trabalhadores” seria necessária uma demonstração clara da essencialidade da medida para a prossecução desse princípio de sustentabilidade estadual. Cabia ao legislador ordinário o ónus da demonstração dessa essencialidade. Perante a sua inexistência, votei no sentido da inconstitucionalidade” (sublinhado nosso).
É mesmo isto que está em causa. A própria designação da lei (requalificação) é uma forma rebuscada e ardilosa de escamotear o essencial. E o legislador coloca-se do lado da arbitrariedade e não faz o mínimo esforço para demonstrar a sua necessidade. Pura arrogância legislativa e perante a mesma haja alguém que nos defenda da sua proliferação.

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