Como seria de prever, a
decisão do Tribunal Constitucional de há dois dias teria de suscitar uma
montanha de reações, focadas essencialmente na ideia de que a governação está
atada de pés e mãos que não consegue reduzir a despesa do Estado. As nuances
variam sobretudo em torno de quem é o bode expiatório de toda essa pretensa
impotência de intervenção, se a Constituição, se o próprio Tribunal
Constitucional. Neste último plano e com o exagero provocatório de sempre,
Vasco Pulido Valente não hesita em classificar o TC de trincheira da classe média
portuguesa, abrigada em torno do Estado e da defesa das suas regalias. Estou
convencido de que toda esta tropa de comentadores que gostam de afirmar a sua
costela liberal, regra geral sempre alicerçada num “apoiosinho” qualquer vindo
das bandas do Estado, não se deu ao luxo de ler atentamente o acórdão que sustentou a decisão de inconstitucionalidade.
O acórdão é bem mais
interessante do que essa atoarda de comentário fácil e curiosamente fui
encontrar na declaração de voto de Maria Lúcia Amaral a posição que melhor
reflete a minha interpretação que ficou da leitura. Cito porque a prosa é boa e
a senhora juíza tem cabeça e sabe o que diz:
“(…) A garantia de segurança do emprego, que o
artigo 53º da CRP consagra, não é uma “especificidade” da Constituição
portuguesa. É antes um princípio comum aos Estados da Europa, se atentarmos no
que dizem os artigos, que o Acordão cita, das cartas europeias de direitos. O
que está em causa é, tão-somente, o direito a não se ver arbitrariamente privado de um emprego que legitimamente se obteve, e
que é o modo de sustentação da via própria e familiar. A aplicação desta garantia (que é assim, tal como o princípio
da continuidade mínima da ordem jurídica, um princípio constitucional comum aos
Estados da Europa) ao emprego público traz, por certo, especificidades. Uma
coisa é admitir restrições ao direito à segurança no emprego quando o que está
em causa – como sucede nas relações laborais do direito privado, é a iniciativa
económica privada, enquanto “valor constitucional” que legitime a restrição;
outra coisa é admitir restrições a esta garantia quando o que está em causa –
como sucede nas relações de emprego público – o bom funcionamento do Estado,
convocado como motivo e fundamento para a restrição. Sobretudo em circunstâncias,
como estas que rodeiam o contexto em que a presente questão é posta ao Tribunal,
em que o “bom funcionamento do Estado” significa nem mais nem menos do que o
imperativo de reestruturação da Administração Pública, não pode negar-se o
particular peso e a particular intensidade dos valores constitucionais
que justificariam a restrição do direito à segurança no emprego. Não há –
sejamos claros – ordem constitucional que perdure para além da sustentabilidade
do Estado, como não há constituição que racionalmente eleja como princípio
orientador da ordem pública a “irresponsabilidade” (ou a indiferença) da geração
presente perante a autonomia das gerações futuras (sublinhado nosso).Simplesmente,
e uma vez mais, para legitimar o comportamento arbitrário da administração no
despedimento dos seus próprios “trabalhadores” seria necessária uma demonstração
clara da essencialidade da medida para
a prossecução desse princípio de sustentabilidade estadual. Cabia ao
legislador ordinário o ónus da demonstração dessa essencialidade. Perante a sua inexistência, votei no sentido da
inconstitucionalidade” (sublinhado nosso).
É mesmo isto
que está em causa. A própria designação da lei (requalificação) é uma forma
rebuscada e ardilosa de escamotear o essencial. E o legislador coloca-se do
lado da arbitrariedade e não faz o mínimo esforço para demonstrar a sua
necessidade. Pura arrogância legislativa e perante a mesma haja alguém que nos
defenda da sua proliferação.
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