Miguel Cadilhe assina hoje no Público um artigo inserido numa série de
testemunhos que o jornal está a solicitar para apreciação da ação governativa
de Vítor Gaspar até à sua recente demissão.
As críticas inteligentes aos dois anos de Gaspar não têm abundado,
independentemente do quadrante político de que partem. Não tenho dúvidas em
afirmar que a apreciação de Miguel Cadilhe é muito inteligente, sobretudo
porque é realizada no quadro de uma pelo menos discutível valorização da prática
governativa liderada por Gaspar.
Cadilhe coloca-se numa perspetiva sugestiva que é a de partir da carta de
demissão de Gaspar, na qual vê sinais de uma autoavaliação excessivamente
rigorosa da sua atuação. O argumento de Cadilhe é a de que o ajustamento e a
Troika eram inevitáveis face à vulnerabilidade com que o governo de Sócrates se
autoinfligiu, sobretudo no que respeita ao último período de governação. Mas,
de forma subtil, coloca questões relevantes como a da dimensão dos estragos,
materializada no chamado doseamento das medidas e na própria graduação do tempo
em que são aplicadas. Cadilhe tem razão em desvalorizar a questão das previsões.
São ridículas, por exemplo, as análises que se têm realizado nos EUA sobre as
capacidades de previsão que Janet Yellen e Lawrence Summers têm revelado das
incidências do ciclo económico para aferir da sua competência para presidir ao
FED. E não é por aí que a ação governativa de Gaspar deve ser criticada. Os
erros de previsão de Gaspar não resultam da incapacidade de dominar a turbulência.
Resultam, isso sim, da incapacidade de perceber que a estratégia de austeridade
delineada subavaliava claramente os efeitos recessivos diretos e colaterais. O
que não é o mesmo.
Cadilhe tem entretanto razão em focar a sua atenção no comportamento do défice
primário estrutural, que deveria ser o grande fator de negociação
internacional, alerta para a não melhoria estrutural do défice externo
largamente alimentada pela recessão (mesmo que ponderando a resiliência
exportadora) e chama a atenção para a influência da recessão no aumento do peso
da dívida no PIB nominal.
Mas mais interessante é a última parte do artigo onde Cadilhe fala de correspondência
recente trocada com Gaspar e da revelação deste estar a ler nos últimos dias o “Theory of Moral Sentiments” de Adam
Smith. É a parte mais intrigante, pois a passagem recomendada por Gaspar a
Cadilhe versa sobre líderes e reformadores e pode suscitar interpretações
variadas sobre o que significa a carta de demissão do ponto de vista do seu
relacionamento com Passos Coelho. Fico com a impressão que Cadilhe tem a sua própria
interpretação sobre o que significa a demissão de Gaspar e a invocação simultânea
do outro Adam Smith. Não a divulgou, ou simplesmente a deixou entre linhas para
bom entendedor.
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