(A crescente disponibilidade
de dados sobre a distribuição do rendimento, seja alargando a massa de países
cobertos, seja abrangendo períodos temporais cada vez mais alargados, vem
permitindo diversos aprofundamentos à sempre controversa relação entre desigualdade
e crescimento, destruindo
mitos mas suscitando novos debates …)
A relação entre desigualdade e crescimento é controversa
já há longo tempo. Ela tem nuances distintas da relação entre desigualdade e
desenvolvimento. Nesta última está sobretudo em causa a dimensão dos valores e
como é que a medida do desenvolvimento deve ou não refletir a presença da equidade
no seu sistema de valores constitutivo. Na relação entre desigualdade e
crescimento, embora dela não desapareça a questão teórica, trata-se de matéria
muito mais “evidence-based” e por
isso sujeita a todas as consequências decorrentes da melhoria da base empírica
de referência.
A relação entre desigualdade e crescimento tem a sua intensidade de controvérsia
dependente das questões que foram pontuando a controvérsia: a desigualdade tende
a favorecer o crescimento? Tende a penalizá-lo? Tende a favorecê-lo e depois a penalizar?
Ou o seu contrário? Será a desigualdade uma espécie de condição necessária para
o crescimento?
À medida que vamos dispondo de cada vez mais longos períodos de observação,
cada vez mais países abrangidos e informação mais rigorosa (por exemplo combinando
dados de despesa, de rendimento ou de impostos), o que é curioso é concluirmos
que as questões atrás assinaladas vão mudando de relevância. Não devemos ainda
esquecer que a disponibilização de cada vez mais dados temporais permite dispensar
aquele perigoso exercício a que a falta de dados temporais obriga: reunir informação
para diferentes países no mesmo momento ou período de tempo e tentar extrapolar
dessa relação o comportamento ao longo do tempo.
Sabemos que, durante largo tempo, predominou a herança da designada curva de
Kuznets: para um dado período de tempo de referência, o indicador de desigualdade
tendia a aumentar à medida que o rendimento per
capita aumentava, passando depois a ter um comportamento contrário. Embora
as análises temporais realizadas para algumas economias por Kuznets sugerissem alguma
conformidade com a curva, a narrativa que foi construída estava longe de ser
confirmada pela evidência temporal: a desigualdade seria um custo a suportar nas
fases iniciais do crescimento económico e só a partir de um certo limiar de rendimento
per capita o crescimento seria possível
com melhorias de equidade.
Esta narrativa esteve longe de ser confirmada pela progressiva disseminação
de dados temporais. Começaram a surgir evidências de que a desigualdade, ao
contrário de ser um custo recompensado nos estádios iniciais de desenvolvimento,
era pelo contrário um fator penalizador. E tornaram-se muito disseminadas as comparações
que mostravam que, a níveis mais desiguais, correspondiam regra geral piores desempenhos
de crescimento económico. Essas evidências penetraram inclusivamente as grandes
organizações internacionais. Já por repetidas vezes citei neste blogue
investigação realizada no âmbito do FMI que alertava para essa narrativa
completamente distinta da que errada fora construída em torno da curva de Kuznets.
É também de investigação recentemente publicada no âmbito do FMI que fala o
post de hoje. Trata-se de investigação empiricamente robusta, envolvendo 77 países
em diferentes estádios de desenvolvimento, de grande diversidade geográfica e
cobrindo mais de vinte anos de informação (blogue de síntese com link aqui e papers de referência com link aqui e aqui).
Temos resultados matizados que suscitam novas necessidades de investigação,
mostrando que os tempos da narrativa da curva de Kuznets vão longe.
Assim, a relação entre desigualdade e desenvolvimento económico (crescimento
do produto per capita) parece ser sensível às especificidades de cada país,
sendo particularmente relevante o nível de desigualdade de partida. Assim, por
exemplo, quando a desigualdade de partida não é muito elevada o aumento da mesma
pode não necessariamente ser penalizador do crescimento. Já quando a
desigualdade inicial é forte não há qualquer evidência de que o seu aumento
seja compensador. O que os dados evidenciam é que a relevância do impacto médio
negativo do aumento da desigualdade no crescimento do produto per capita é pouco
informativa, sendo necessário uma análise mais fina em função das condições
concretas dos países.
O que é surpreendente (e isso mostra a tentação dos economistas por
limiares) é que os investigadores do FMI encontram uma espécie de limiar de 27%
no indicador de desigualdade do coeficiente de GINI a partir do qual o impacto
da desigualdade no crescimento do produto per
capita é inequivocamente negativo.
Todos esperamos que não surja por aí qualquer denúncia de bug informático que
tenha induzido os autores a identificar o limiar dos 27%, tal como sucedeu com
a célebre controvérsia dos 90% do peso da dívida pública no PIB a partir dos
quais a dívida penalizava o crescimento.
Em controvérsias “evidence-based”,
há sempre uma surpresa que nos espera ao virar da esquina. A econometria pode
ser traiçoeira.
Sem comentários:
Enviar um comentário