quarta-feira, 10 de maio de 2017

MACRON: PARA LÁ DA VITÓRIA DE DOMINGO

(Macron na Humboldt University, Berlim, janeiro de 2017)


(Emmanuel Macron tem vindo a revelar-se bem mais consistente do que inicialmente o admitiria, conseguindo algo de manifestamente surpreendente e revelador simultaneamente de visão e coragem, não falando para dentro e para fora segundo cartilhas separadas, o que é um facto novo e promissor…)

Eu sei que as mentes brilhantes do Bloco de Esquerda ficam com urticária quando se lhes fala de Macron. Não é pressuposto alguém com uma carreira no mundo da alta finança ter ideias que vale a pena discutir e pensar em que medida podem desbloquear o lio em que a questão europeia se transformou. Daí o contorcionismo ridículo que tiveram de realizar para explicar o que fariam, se votariam branco ou não apareceriam nas urnas, optando outros por defender Mélenchon, tentando “romancear” o comportamento da extrema-esquerda em França.

Mas a análise concreta de situações concretas tem de ser rigorosa e livre de pressupostos cuja validade seja discutível. É necessário analisar o pensamento em concreto de Macron e contextualizá-lo na rejeição que os franceses fizeram dos partidos mais tradicionais e face ao lio em que a União Europeia se deixou amarrar.

O que me impressionou em Macron foi a sua capacidade de enfrentar os argumentos da Frente Nacional, largamente respaldados por uma percentagem significativa de eleitores apesar da derrota, não cedendo ao piscar de olho fácil a essa população temerosa e com a sensação de ter sido abandonada ou, pelo menos, não compreendida pelas elites. Macron (vale a pena rever algumas partes do debate final com Marine Le Pen) desmontou os argumentos da sua opositora defendendo o contrário dos seus pressupostos, integrando nessa abordagem a defesa da Europa. Ou seja, Macron encurralou Le Pen com uma defesa consistente do aprofundamento da questão europeia, mostrando que os problemas reais oportunisticamente invocados por Le Pen não tinham resolução com o isolamento, o nacionalismo, o fechamento aos outros. Ou seja, em meu entender, Macron ganhou com uma dupla e simultânea autoridade, não construindo um discurso para a França e um outro para a Europa, mas um só. Isso explica em meu entender as elevadíssimas percentagens de adesão nas comunidades urbanas mais cosmopolitas.

É também nessa linha que podemos compreender a intuição explicitada por alguns analistas internacionais quanto ao novo potencial de relançamento da questão europeia. Invocam para isso a importância que as posições e propostas de Macron podem representar do ponto de vista do maior envolvimento dos alemães em visões mais construtivas e não punitivas da Europa, através de uma nova configuração do eixo Paris-Berlim, que valorize as responsabilidades conjuntas dos dois países na construção europeia. Entendamo-nos. A importância das posições de Macron não resulta de eu próprio ter a convicção de que os alemães cederão. Não é isso. Essa matéria dependerá entre outras coisas das eleições alemãs em setembro deste ano. As posições de Macron são relevantes porque constituem uma unidade de pensamento coerente e comum para os problemas da França e da União Europeia e isso agrada-me porque revela visão e uma grande coragem. Não cedeu aos populismos multinível. E permite uma aplicação crítica transpondo-a para Portugal. Para uma França de dimensão relevante Macron não hesita em considerar que os problemas da França têm de ser resolvidos pensando a União Europeia. Vejam as diferenças com a esquerda portuguesa secessionista do Euro: para uma economia pequena e frágil como a nossa, saída do euro, e canonização da desvalorização competitiva; para uma economia com dimensão como a francesa uma solução de integração. Não admira que digam cobras e lagartos de Macron.

Claro que ao Economist não lhe escapou esta nuance. Por isso o prefiro  e visito regularmente, embora não me identifique com o seu ideário, a literaturas inconsequentes de minudência. Nesta matéria, penso que devemos ler com muita atenção o discurso de Emmanuel Macron na Universidade de Humboldt em Berlim. O discurso é um texto exemplar para que, em território alemão e numa das suas instituições universitárias mais emblemáticas, se compreenda a unidade da abordagem de Macron aos problemas da França e da União Europeia, exigindo aos alemães uma maior responsabilização na solução desejada. E não esquecendo que a Alemanha não pode continuar a depositar toda a sua argumentação no arrumar da casa anteriormente concretizado, ocultando ardilosamente os ganhos da integração num Euro construído à sua paridade.

A jogada de Macron é de xadrez avançado. O desenvolvimento da primeira jogada entre portas saiu-lhe bem, sobretudo porque não partiu cedendo. Mas haverá desenvolvimentos internos posteriores, esperando que mantenha a carta das ideias da navegação e resta saber se continuará a manter a mesma coerência de visão unitária para dentro e para fora. A desmontagem de algumas das conquistas do movimento sindical em França vai ser dura e muita energia e clarividência vão ser necessárias para impedir que a flexibilização q.b. não seja projetada como um simples ataque ao Estado social francês, que nem o instável Sarkosy se atreveu a mexer. Para tornar essa transição exequível e não suscetível de engrossar as hostes nacionalistas, seria necessário que as propostas de Macron tivessem alguns desenvolvimentos a nível europeu.

A investigadora do CES de Coimbra, por onde campeia algum do pensamento bloquista, Carla Ervedosa, tem razão quando integra o paradoxo de ter sido a administração Trump e não as instituições europeias a colocar a Alemanha na defensiva quanto à insustentabilidade dos seus excedentes orçamentais e da balança das transações correntes. Mesmo antes da publicação da Teoria Geral, e sem o enquadramento de uma união económica e monetária mas apenas o da economia mundial, Keynes mostrou-nos com clareza que a permanência de excedentes e défices durante largo tempo e sem mudança de posição relativa destrói o equilíbrio global que se pretende manter. O desenvolvimento dessa ideia para o contexto da UEM redobra a importância do argumento. E o cenário atual de “lower zero bound” refina-o.

Macron tem plena consciência de que a sua Visão unitária cairá pela base se a Alemanha não mexer e não der mostras de alguma mudança. O discurso é também nessa perspetiva uma peça notável. Enfatiza fortemente a generosidade alemã e de Merkel na questão dos refugiados. Vai buscar posições de Karl Lamers e de Wolfgang Schäuble em documento de 1994 sobre a política europeia. Integra pensamento de Joschka Fischer e Willy Brandt. E propõe sobretudo um programa para uma Europa da Soberania com cinco pilares: segurança, a incompletude do Euro, a civilização da globalização (a sua reforma), a transição ecológica e a revolução digital. Destes 5 pilares, merece destaque o do completamento do Euro, com um orçamento para a Europa, focado no financiamento dos investimentos nevrálgicos, nos mecanismos de estabilidade financeira e na assistência a choques nos países mais vulneráveis: “A UEM exige responsabilidade estrita e solidariedade profunda: regras claras, cooperação leal e uma forte assistência mútua. Este é o “New Deal” que estou a promover, o único acordo que pode reconstruir a confiança e gerar crescimento”.

Não imagino como terão reagido os rostos presentes no auditório da Humboldt.

1 comentário:

  1. Análise pouco séria das reservas "bloquistas". A dúvida sobre se alguns anos de Macron não levarão ao reforço do pensamento à la Le Pen (o que verdadeiramente está em causa) parece-me bastante legítima.

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