(Macron na Humboldt University, Berlim, janeiro de 2017)
(Emmanuel Macron
tem vindo a revelar-se bem mais consistente do que inicialmente o admitiria,
conseguindo algo de manifestamente surpreendente e revelador simultaneamente de
visão e coragem, não
falando para dentro e para fora segundo cartilhas separadas, o que é um facto
novo e promissor…)
Eu sei que as mentes brilhantes do Bloco de Esquerda ficam com urticária
quando se lhes fala de Macron. Não é pressuposto alguém com uma carreira no
mundo da alta finança ter ideias que vale a pena discutir e pensar em que
medida podem desbloquear o lio em que a questão europeia se transformou. Daí o
contorcionismo ridículo que tiveram de realizar para explicar o que fariam, se
votariam branco ou não apareceriam nas urnas, optando outros por defender
Mélenchon, tentando “romancear” o comportamento da extrema-esquerda em França.
Mas a análise concreta de situações concretas tem de ser rigorosa e livre
de pressupostos cuja validade seja discutível. É necessário analisar o pensamento
em concreto de Macron e contextualizá-lo na rejeição que os franceses fizeram
dos partidos mais tradicionais e face ao lio em que a União Europeia se deixou
amarrar.
O que me impressionou em Macron foi a sua capacidade de enfrentar os
argumentos da Frente Nacional, largamente respaldados por uma percentagem
significativa de eleitores apesar da derrota, não cedendo ao piscar de olho
fácil a essa população temerosa e com a sensação de ter sido abandonada ou,
pelo menos, não compreendida pelas elites. Macron (vale a pena rever algumas
partes do debate final com Marine Le Pen) desmontou os argumentos da sua
opositora defendendo o contrário dos seus pressupostos, integrando nessa
abordagem a defesa da Europa. Ou seja, Macron encurralou Le Pen com uma defesa consistente
do aprofundamento da questão europeia, mostrando que os problemas reais
oportunisticamente invocados por Le Pen não tinham resolução com o isolamento,
o nacionalismo, o fechamento aos outros. Ou seja, em meu entender, Macron
ganhou com uma dupla e simultânea autoridade, não construindo um discurso para
a França e um outro para a Europa, mas um só. Isso explica em meu entender as
elevadíssimas percentagens de adesão nas comunidades urbanas mais cosmopolitas.
É também nessa linha que podemos compreender a intuição explicitada por
alguns analistas internacionais quanto ao novo potencial de relançamento da
questão europeia. Invocam para isso a importância que as posições e propostas
de Macron podem representar do ponto de vista do maior envolvimento dos alemães
em visões mais construtivas e não punitivas da Europa, através de uma nova
configuração do eixo Paris-Berlim, que valorize as responsabilidades conjuntas
dos dois países na construção europeia. Entendamo-nos. A importância das
posições de Macron não resulta de eu próprio ter a convicção de que os alemães
cederão. Não é isso. Essa matéria dependerá entre outras coisas das eleições
alemãs em setembro deste ano. As posições de Macron são relevantes porque
constituem uma unidade de pensamento coerente e comum para os problemas da
França e da União Europeia e isso agrada-me porque revela visão e uma grande
coragem. Não cedeu aos populismos multinível. E permite uma aplicação crítica
transpondo-a para Portugal. Para uma França de dimensão relevante Macron não
hesita em considerar que os problemas da França têm de ser resolvidos pensando
a União Europeia. Vejam as diferenças com a esquerda portuguesa secessionista
do Euro: para uma economia pequena e frágil como a nossa, saída do euro, e
canonização da desvalorização competitiva; para uma economia com dimensão como
a francesa uma solução de integração. Não admira que digam cobras e lagartos de
Macron.
Claro que ao Economist não lhe escapou esta nuance. Por isso o prefiro e visito regularmente, embora não me
identifique com o seu ideário, a literaturas inconsequentes de minudência.
Nesta matéria, penso que devemos ler com muita atenção o discurso de Emmanuel Macron na Universidade de Humboldt em Berlim. O discurso é um texto exemplar para que,
em território alemão e numa das suas instituições universitárias mais
emblemáticas, se compreenda a unidade da abordagem de Macron aos problemas da
França e da União Europeia, exigindo aos alemães uma maior responsabilização na
solução desejada. E não esquecendo que a Alemanha não pode continuar a
depositar toda a sua argumentação no arrumar da casa anteriormente
concretizado, ocultando ardilosamente os ganhos da integração num Euro
construído à sua paridade.
A jogada de Macron é de xadrez avançado. O desenvolvimento da primeira
jogada entre portas saiu-lhe bem, sobretudo porque não partiu cedendo. Mas
haverá desenvolvimentos internos posteriores, esperando que mantenha a carta
das ideias da navegação e resta saber se continuará a manter a mesma coerência
de visão unitária para dentro e para fora. A desmontagem de algumas das
conquistas do movimento sindical em França vai ser dura e muita energia e
clarividência vão ser necessárias para impedir que a flexibilização q.b. não
seja projetada como um simples ataque ao Estado social francês, que nem o
instável Sarkosy se atreveu a mexer. Para tornar essa transição exequível e não
suscetível de engrossar as hostes nacionalistas, seria necessário que as
propostas de Macron tivessem alguns desenvolvimentos a nível europeu.
A investigadora do CES de Coimbra, por onde campeia algum do pensamento
bloquista, Carla Ervedosa, tem razão quando integra o paradoxo de ter sido a
administração Trump e não as instituições europeias a colocar a Alemanha na
defensiva quanto à insustentabilidade dos seus excedentes orçamentais e da
balança das transações correntes. Mesmo antes da publicação da Teoria Geral, e
sem o enquadramento de uma união económica e monetária mas apenas o da economia
mundial, Keynes mostrou-nos com clareza que a permanência de excedentes e
défices durante largo tempo e sem mudança de posição relativa destrói o
equilíbrio global que se pretende manter. O desenvolvimento dessa ideia para o
contexto da UEM redobra a importância do argumento. E o cenário atual de “lower zero bound” refina-o.
Macron tem plena consciência de que a sua Visão unitária cairá pela base se
a Alemanha não mexer e não der mostras de alguma mudança. O discurso é também
nessa perspetiva uma peça notável. Enfatiza fortemente a generosidade alemã e
de Merkel na questão dos refugiados. Vai buscar posições de Karl Lamers e de
Wolfgang Schäuble em documento de 1994 sobre a política
europeia. Integra pensamento de Joschka Fischer e Willy Brandt. E propõe sobretudo
um programa para uma Europa da Soberania com cinco pilares: segurança, a
incompletude do Euro, a civilização da globalização (a sua reforma), a
transição ecológica e a revolução digital. Destes 5 pilares, merece destaque o
do completamento do Euro, com um orçamento para a Europa, focado no
financiamento dos investimentos nevrálgicos, nos mecanismos de estabilidade
financeira e na assistência a choques nos países mais vulneráveis: “A UEM exige responsabilidade estrita e solidariedade
profunda: regras claras, cooperação leal e uma forte assistência mútua. Este é
o “New Deal” que estou a promover, o único acordo que pode reconstruir a
confiança e gerar crescimento”.
Análise pouco séria das reservas "bloquistas". A dúvida sobre se alguns anos de Macron não levarão ao reforço do pensamento à la Le Pen (o que verdadeiramente está em causa) parece-me bastante legítima.
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