domingo, 14 de maio de 2017

MUDANÇA E CONTINUIDADE




(O dia de ontem, aqui diversificadamente registado pelo meu colega de blogue, tem material rico e de sobra sobre o conceito de mudança numa sociedade como a portuguesa, reflexão a que me dedico depois de não ter ficado indiferente à força que Francisco no seu cansaço irradia, de ter vivido o ataque final ao tetra e ter assistido ao desconcertante Salvador …)

Na simplicidade dos acontecimentos que marcaram o dia de ontem, Papa e Fátima, o sortilégio do futebol e um festival que se tornou rotina, há uma sociedade portuguesa que se debate como qualquer outra com forças de inércia e de mudança. Há muito boa gente que pensa que a mudança social é uma espécie de mudança de placa gráfica ou de motherboard de um computador, que se trata de substituir uma realidade por uma outra. Mas a mudança social é sempre a transformação a partir de algo que nunca desaparece verdadeiramente e é isso que torna a mudança social um processo indeterminado, pois nunca saberemos imaginar na perfeição como a realidade de partida se transforma e que dimensões vão permanecer mais ou menos alteradas.

O dia de ontem mostra-nos que a religiosidade, apesar do avanço irreversível da percentagem de população urbana, da qualificação e das também das contrariedades enfrentadas pela própria Igreja, continuará a estar presente na sociedade portuguesa, não podendo ser facilmente ignorada e sobretudo subvalorizada. É claro que a força interior de um Papa regenerador do pensamento e com experiência dos bairros operários de Buenos Aires ajuda a dar expressão ao fenómeno Fátima, cada vez mais organizado. A organização do processo de segurança e acolhimento terá estado impecável, mas no fim, no caos de algumas pessoas com bilhete de autocarro e sem autocarro para regressar a Lisboa, lá regressaram alguns traços mais indeléveis da nossa organização de trazer por casa.

Quanto ao sortilégio do futebol, que dizer, sobretudo da maravilha que foi o ataque final? Hoje, o futebol está territorialmente mais democratizado. O FCP emergiu como contrapoder, e as comunidades clubistas de Braga e Guimarães são contrapontos relevantes, embora lhes falte ainda investimento em magnitude bastante para tornar a liga mais competitiva. Há outras comunidades a despontar, Rio Ave, Chaves, entre outras, mas aí o débil suporte demográfico de massas associativas é uma enorme desvantagem. Quanto ao Sporting adivinha-se ainda uma longa transição, os Brunos esganiçados deste país não convivem bem com os valores mais tradicionais do clube e este fim de época deu-me um gozo tremendo, pelo menos pela redução de decibéis esganiçados que as duas últimas derrotas do Sporting provocaram, afinal uma questão de saúde pública auditiva.

A inércia do futebol é das fortes, uma espécie de religião. Neste contexto, a mudança medir-se-á pela sustentabilidade da força da organização profissional versus a cedência à exploração fácil das paixões mais medonhas e incontroláveis. Talvez o Benfica da nova estrutura organizativa tenha cedido algures nesta época a essa tentação. Mas lá em baixo no relvado a estrutura técnica q.b. de Rui Vitória não se deixou contaminar e manteve uma contenção irrepreensível. Mas também o FCP dos últimos tempos cedeu também ao desenvolvimento do que já foi a sua imagem de marca, a força organizativa de uma estrutura profissional. Só espero que a recupere o mais rapidamente a bem da competição. Quanto ao Sporting, a transição será longa como disse.

E finalmente a música e o ressurgimento para nós do que se havia tornado numa manifestação de irrelevância, na qual a nossa pequena dimensão não contava. Mas contou finalmente. Talvez pela maior notoriedade do país, por uma sucessão de eventos, pela própria movimentação turística. Mas talvez porque a música popular tem hoje uma organização profissional e uma rede de relações a nível técnico e profissional de que os nossos desgraçados concorrentes de outros tempos estavam órfãos, entregues às ilusões puristas do isolamento a que o país se entregava. A formação musical é hoje um caso de estudo. Há jovens profissionais nos domínios do áudio, do vídeo, do digital que transformaram o contexto em que se faz música. Basta passar os olhos pelos programas diversos de captação de talentos que têm proliferado pelas televisões.

Um país que tem mudado apesar das profundas relações de inércia que nos envolvem. Um país que vai continuar a mudar apesar da religiosidade, da continuidade de Fátima, das paixões do futebol.

Tudo coisas que Passos Coelho não compreendeu, afoito na construção do Portugal novo que a Troika convidava a implantar. E que continua a não compreender, dado afinal o desconcerto que a geringonça não provocou.

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